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terça-feira, 29 de abril de 2014

Vivência Ltda



Uma das músicas mais gostosas de tocar e de cantar da banda Engenheiros do Hawaii e "Infinita Highway". A letra é daquelas com jogos de palavra que sempre me encantam e me ganham como admirador e reprodutor. A música é empolgante (melodia, harmonia etc.) e, bem particularmente, a execução do contrabaixo dela é algo que motiva a gente a tocar a qualquer hora.

Logo de manhã hoje fui chacoalhado com um verso dessa música que saltou da minha memória para meus pensamentos mais recentes. E ainda não eram 7h. "Não adianta mesmo ser livre, se tanta gente vive sem ter como viver". Esse verso me tomou de assalto quanto vi atravessar à minha frente uma senhora e seu filho. Ele um pouco atrás com seus passos curtos de menino novo. Ela a passos largos, mas com um curativo imenso que tomava todo o lado esquerdo de seu rosto. Que limitação era aquela?

À tarde, ao me dirigir a pé, e sempre apressado, do colégio para o escritório, vi novamente uma senhora que vejo todos os dias em um ponto de ônibus. Uma cadeirante amputada. O chão sob as rodas de sua cadeira está absolutamente roxo, de tanta medicação que ela passa para tentar atenuar as dores das enormes feridas que deixam sua perna em carne viva. Não sei o que ela faz ali todos os dias. Também não sei que limitação é aquela.

Olho para todo mundo que aparenta estar livre de toda e qualquer limitação e vejo o tanto de coisas que cada um é capaz de fazer. E admiro os que fazem muito. Admiro mais ainda os que fazem somente o que está ao alcance de suas mãos e que é suficiente para sua vivência diária. Todos, em maior ou menor escala, têm suas limitações. Ora mais, ora menos severas. E seguem vivendo "nesta infinita highway". Muitas vezes, "sem ter como viver".

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Do amor e dos livros



Acredito que tenha sido Camões quem tenha dito "Para tão longo amor, tão curta vida", singela frase que encerra grande sabedoria, sobretudo, para aqueles que amam no sentido de doar-se, de fazer o bem desinteressadamente. Há tanta gente e tantas situações para amar, que a vida parece curta. Méritos ao poeta clássico português pela sensibilidade

Infelizmente não sei ao certo de quem é a frase, segundo a qual, os livros são bons, mas seriam ainda melhores se, juntamente com eles, viesse o tempo necessário para serem lidos. Li num desses apanhados de frases célebres, das quais a gente lê um montão e, de tanto ler, já não sabe quem disse o quê. Pior: depois ainda mistura os autores, os assuntos, emenda um frase na outra... e, no fim, a autoria fica irreconhecível.

Estamos em congresso a partir de hoje pela PUC-SP. Um congresso 2em1, porque, ao mesmo tempo em que ele é o 15º Congresso Brasileiro de Língua Portuguesa, ele também é o 6º Congresso Internacional de Lusofonia. Pois bem, mal cheguei e já me deparei com a exposição de livros maravilhosos e diretamente ligados ao que tenho pesquisado atualmente. Pronto: comprei um. Dois. Três. Quatro... Oito.

Talvez eu leia um ou outro. E os capítulos de um um e de outro outro. Mas até eu ler os 8... diante da infinidade de coisas que tenho por fazer, vai demorar, porque realmente não veio com eles o tempo necessário para lê-los. Do mesmo modo que não há tempo suficiente para eu poder aplicar o conhecimento adquirido neles à melhoria da qualidade de vida daqueles que se põem a aprender comigo (minha forma de amar). Enquanto há vida, que se ame. Enquanto há livros, que se leia.

domingo, 27 de abril de 2014

Verde Noite



Não faz muito tempo que entrei em casa, voltando de uma viagem muito agradável a uma cidadezinha do interior paulista. Chovia e, por incrível que pareça, mesmo sendo domingo à noite, havia pouco trânsito. Espaçados caminhões e suas cargas incrivelmente pesadas, além de alguns carros menores eram fontes paa as luzes que iluminavam a estrada.

E muitos momentos tentei olhar para o alto em busca de uma outra fonte de luz. Uma estrela, mesmo que cadente, que pudesse fazer um risco no céu, de alto a baixo, com sua velocidade estonteante teria sido capaz de um feixe de luz vertiginoso. Mas não se via estrela alguma. Céu encoberto. A lua, talvez, com sua luz emprestada do Sol, poderia ainda que palidamente colocar alguma claridade nesta noite em que atravessei municípios em busca de minha casa.

O chão molhado refletia com certa intensidade a luz dos faróis do meu carro. Momento houve em que olhei para os lados e vi apenas escuridão passando parada à esquerda e à direita. Vezes houve em que direcionei o olhar para o firmamento, que ostentava grossas camadas de nuvens muito escuras que aguardavam para desaguar sobre a terra já úmida da garoa que esfriava a noite. Olhei para trás pelo retrovisor. Era como se olhasse um painel inteiramente desprovido de luz. Parecia haver somente eu. Indo. Vindo.

A um pouco mais de 100km/h eu fazia meu carro girar os pneus sobre aquele asfalto bem cuidado. A velocidade semelhante meus pensamentos, ora seguindo ora travando, se embrenhava num raciocínio ligado à possibilidade de estar indo na vida, na certeza de estar fazendo a coisa certa. Dirigindo. Na certeza de estar indo para um lugar certo. Mas sem muitas condições de ver o que se passa parado ao meu lado. O que está diante de mim. Acima. E o que está ficando para trás. Não sei. Sei que, na esperança de verde noite, sigo indo. Vindo.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Entre as nuvens e o chão




Gosto quanto ouço Raul. Sempre gosto, aliás. Não importa se as músicas de deboche, ou as de protesto ou quaisquer outras. Respeito Raul. Hoje estou com dois versos dele na cabeça: "Eu é que não me sento no trono de um apartamento, esperando a morte chegar" e "Eu tenho uma porção de novas pra conseguir e eu não posso ficar aí parado". Ambos da música Ouro de Tolo. Aliás, juntamente com Gita, esta foi a primeira música que ouvi do Raul, quando ainda era menino com menos de 10 anos em Janaúba. Àquela época, eu estendi meus braços. A vida já me dizia desde os meus 4 anos que eu não poderia ficar ali parado. 

Tenho para mim que os desafios, os desejos de saltos maiores, os cumes de montanhas cada vez mais altas... são as motivações da nossa vida. Sem essas asas de borboleta batendo dentro da gente, abre-se a possibilidade de se viver sob a sombra copada das árvores frondosas, fixas em terra. Nada mal para quem não tem borboletas na barriga nem asas nos pés. Pode ser diferente. Com a cabeça nas nuvens, sem perder os pés do chão. Assim vivem, imagino, os sonhadores - aqueles que alçam voos maiores, que percorrem quilômetros a mais. Para o alto e avante - embora ninguém seja super-homem.

Aliás, a sensação que me dá é exatamente a de que nenhum de nós é super-homem. Nenhum de nós se alimenta de criptonita, não levanta aeronaves, não sobe a alturas incomensuráveis... e, muito menos, sai por aí com uma cueca vermelha sobre a calça justa e azul. Nenhum de nós é louco, imagino. Disso decorre minha visão inversa desse mesmo pensamento: ao preferirmos um voo mais alto, abraçamos a implicação de deixar outras coisas. Sim, porque preterir implica preferir. Homem e criança entram em peleja.

A gente se prepara para o voo e troca olhares com ele. Ele mostra suas vantagens, seus perigos, e nos convida, como quem diz: obrigado a vir você não é, mas, se quiser, venha. Daí a ilusão de super-homem diz: vamos! E, logo após, é seguido por uma voz de criança que sabe do tamanho de seus braços. Assim, ficamos entre o adulto e a criança. E o que é interessante é que a criança estará presente em ambas as decisões: se ficar, reconheceu o tamanho dos braços e se conformou a isso. No entanto, se for, ela estará presente precisando aprender tudo da nova situação e acrescentar isso ao tamanho de seus braços.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Apoio



Essa vida da gente muitas vezes cria umas situações em que se faz necessário ajudar quem está em situação ruim. Tenho o privilégio de trabalhar com adolescentes e, mais que isso, poder influenciar a vida deles não só com o conteúdo que ensino, mas também com as coisas que digo (independentemente da matéria) e com as coisas que faço. Muitas vezes, é necessário extrapolar o ambiente de sala de aula e chegar a um espaço pessoal.

Uma das minhas atribuições é atender alunos e suas famílias. Especialmente os alunos que apresentam alguma forma de desvio, seja de comportamento, seja de rendimento escolar. Lembro-me agora do caso de um garoto que, desde os primeiros dias daquele ano, me dava toda a impressão de que seria um imenso problema para eu administrar em todos os sentidos. Já o havia orientado várias vezes sobre como proceder em aula a fim de que pudesse obter um melhor rendimento, dentro de suas condições.

Não teve jeito: ele só foi perceber muito tardiamente a gravidade da situação a que o levaram seu comportamento e seu desempenho nas provas. Havia ficado em quase todas as recuperações possíveis. Não tive dúvidas: assim que recebi o relatório geral, chamei-o para conversar e orientar a como conduzir o processo dali para a frente do ano letivo. Naturalmente também chamei seus pais para conversar e colocar-lhes a par da situação. Não pôde vir o pai; logo, foi a mãe quem compareceu ao atendimento.

Mal terminei a saudação de bom dia, a senhora já tomou a palavra e disse que gostaria de sintetizar as coisas, porque sabia que meu tempo era precioso. No entanto, ela se envolveu tanto com seu relato, que praticamente descortinou sua vida e a do que havia ficado de sua família, pois uma separação muito mal resolvida ainda estava em curso. No curso daquela separação ainda estava o desempenho escolar do meu aluno. No fundo, meu atendimento acabou sendo muito mais profícuo para a mãe do que para o filho. Todavia, tanto ela quanto ele retomaram o curso de suas vidas, a partir daquele simples apoio, que, com certeza, somou-se a uma série de outros fatores e acabou resultando na realização do bem na vida daquelas pessoas.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Água na boca



Deus me livre de fazer aqui um texto apelativo. Não estou pra isso, porque não sou nenhum baluarte, nenhum estandarte da moral nem dos bons costumes. Não me prestaria a este serviço aqui no blog. Mas uma notícia hoje me incomodou de tal, maneira, que não posso deixar de registrar. Fica aqui apenas e tão somente o registro.

Estamos vivendo dias de imensa secura na cidade de São Paulo, que está (diga-se, não de passagem) entre as oito maiores cidades do mundo em todos os sentidos. Não chove suficientemente há tempos, razão pela qual uma de nossas principais represas já não tem praticamente mais água para represar. Ela, sim, está represada em sua função. Há lá míseros 11% de sua capacidade. No ano passado, nesta mesma época, o reservatório batia a casa dos 70%.

A imagem que se vê, quando se contempla uma imagem aérea dessa represa, que está em posição fundamental em nosso sistema de abastecimento de água, a impressão que se tem é de que se está observando o deserto. Aquele chão completamente rachado pelo calor que fez fissuras no solo. Para ser um pouco mais real em sua nordestinidade, bastaria jogar ali algumas carcaças de animais que morrem à míngua com a garganta seca; aliás, não só a garganta: completamente desidratados.

Vem a notícia hoje de que a tubulação que conduz a água da represa até nossas residências é absolutamente velha e cheia de fissuras por onde vazam 31% da água produzida. O número 31 não parece grande coisa. Entretanto, quando se sabe que esse percentual representa um volume de 950 BILHÕES DE LITROS DE ÁGUA, a coisa muda de figura. Não se trata de um descaso apenas com cada um de nós ou com a cidade, mas com o mundo. Em breve, não vai conseguir mais nem ficar "com água na boca".

terça-feira, 22 de abril de 2014

Mal acostumado



Grande parte do que sabemos é constituída por aquilo que nos acostumamos a fazer. Vale dizer o mesmo em relação ao nosso pensar: pensamos o que nos acostumamos a pensar. A mesma máxima vale para (talvez) todos os terrenos da experiência humana, de modo que costumes, hábitos, aprendizagens vão solidificando aquilo em que nos tornamos. Evidentemente alguns costumes são excelentemente bem vindos, enquanto outros, nem tanto. Há costumes que nos deixam mal acostumados.

Algumas regalias de que sempre desfrutamos, como certos cuidados maternos: roupa lavada e passada, comida quentinha, dinheiro do lanche... tudo que tínhamos na adolescência criou costumes que foram rompidos quando do afastamento da casa materna. Daí, ao termos de dar conta de tudo sozinhos, logo vemos o quão mal acostumados estávamos. Mas isso não é ruim, desde que tenhamos maturidade para começar a tomar conta do rumo da própria vida, sem depender (muito) dos outros.

Lembro-me de uma aluna que orientei na faculdade de Letras, quando da realização de seu TCC. Como era jovem pesquisadora, a presença do Orientador é mais próxima na indicação bibliográfica, no direcionamento da escrita etc. Por coincidência, quando ela começou a fazer Lato Sensu, teve a mim como sorteado para orientá-la. Quando percebeu que se tratava de um procedimento diferente em relação à autonomia para a pesquisa, ficou brava e reclamou. Não fiz outra coisa, senão rir calmamente. E orientá-la a mudar seu costume.

Hoje atendi um aluno no escritório que no ano passado quase foi reprovado. Quase. Apesar de sua situação periclitante, enquanto achava que perderia o ano fatalmente, foi surpreendido com a aprovação. O conselho de sua escola (que não conheço, por isso não posso julgar) o aprovou. Neste ano, ele fechou o primeiro trimestre com todas as matérias abaixo da média. Diagnóstico da mãe: ele está mal acostumado. Acha que não precisa estudar, pois acredita que vai passar de ano. Este não é um bom costume.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Páscoa passa



Do hebraico Pessach; do aramaico pashā; do grego paskha e do latim pascua, esta palavra chegou à nossa língua no século XIII por meio da tradição cristã que se intensificou tanto quanto (ou até por meio da) língua portuguesa que, então, florescia. Ao longo desses anos todos, seu sentido foi se mudando. E mudou tanto, que hoje dificilmente os mais jovens a associam à ressurreição de Cristo. Mudam-se os tempos, mudam-se as palavras, mudam-se os sentidos, mudam-se as práticas.

A Páscoa significa originalmente a celebração pela liberação do povo hebreu das mãos do faraó. Na verdade, essa libertação está ligada à morte de muitos primogênitos (humanos e animais) e a conflitos vitais na busca de um novo estado. Dessa forma, a origem do termo está ligada à passagem. Daí exatamente a etimologia da palavra páscoa (pessach). Era, pois um momento de passagem. Tão passagem quanto a de Cristo que, por meio da ressurreição, teria recobrado a vida em um outro estado de existência.

Nos nossos dias, o primeiro sentido está totalmente esquecido - salvo os redutos altamente religiosos em que esse conhecimento é cultivado. Dos pães ázimos que os hebreus comiam; passando pelo pão, peixe e vinho que celebram a Páscoa cristã; chegando aos ovos de chocolate que marcam esta data (trocando a figura do Cristo pela de um coelho), os sentidos estão bastante alterados. Isso, em si, não é melhor ou pior (embora, particularmente, eu considere a perda da história sempre algo muito significativo). É diferente, apenas.

Do ponto de vista pessoal, por ser uma data marcante em nossa sociedade, a Páscoa marca celebração de conquistas (acadêmicas, profissionais, pessoais), de encontros, de geração de vida. Para outros, no entanto, ela pode remeter a perdas (acadêmicas, profissionais, pessoais). Se, por um lado, ela pode estar ligada à vitória sobre a morte - como vivenciaram os judeus e cristãos -, por outro, ela pode estar ligada à experiência própria da morte - como vivenciaram os politeístas egípcios. O que dizer dos que hoje vivem - sem ser judeu, cristão, politeísta...? Dizer apenas que vivem a Páscoa conforme o mais pessoal e egocêntrico dos sentimentos. Talvez a Páscoa signifique uma libertação momentânea dos dias de trabalho.

sábado, 19 de abril de 2014

Braços abertos




Tim Maia: "Braços abertos sempre a esperar. Pois bem, cheguei. Quero ficar bem à vontade, na verdade eu sou assim navegador dos 7 mares". Penso hoje nesta expressão "braços abertos", que caracteriza aquele que está aberto ao que de novo a vida pode oferecer ao longo dos 7 mares que navegamos nessa nossa tão curta existência.

Mas nem sempre os braços estão abertos apenas para o novo. Há nas coisas já conhecidas (assim como nas pessoas) algo de inexplorado, algo com cheiro de novo, com o viço de uma pétala banhada pelo orvalho da manhã que rompe trevas, até então, absolutas. Os preconceitos, as opiniões previamente formadas que enrijecem os pontos de vista são poderosos elementos para cruzar os braços diante do novo ou do velho que mostra ao de novo. De novo.

Cristo Redentor, a estátua, que vigia o Rio de Janeiro (já tão sem vigias), parece abrir os braços por toda a cidade à espera de que todos venham a ele. Por incrível que pareça, há muitos cariocas, muitos fluminenses que ainda não tomaram o trenzinho que leva aos braços abertos daquela estátua. Mas ela está lá, como a gente muitas vezes está de braços amplamente estendidos à espera de... de... seja lá do que for que brote do peito de quem abre os braços.

Situações diversas, muitas vezes, alegres. Situações adversas, muitas vezes, tristes. São momentos que afastam os braços para longe das costelas, e põem uma mão a leste e outra a oeste, na tentativa de oferecer um abraço, um acolhimento, uma conforto, um elogio, um reconhecimento. Hoje o dia foi pródigo disso. Todo dia é pródigo disso. A gente abre os braços. Abrem os braços pra gente. Abraçamo-nos e vamos singrar os 7 mares, cantando Eurithmics "Sweet dreams are made of this. Everybody is looking for something".

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Flertando com a esperança



Todas as pessoas têm alguma motivação principal e uma série de outras secundárias. Algumas que já fazem parte de sua vida. Outras que elas esperam desfrutar do privilégio de conquistar. Essas estão no campo da esperança. Fazem parte daquilo que traz para o peito alguma razão para continuar os dias sobre este mundo que é tão cheio de disparidades, que tantas vezes puxa para o inferno, que tantas vezes eleva para o céu.


Embora a tradição cristã tenha separado esses dois "mundos", tão falados desde que Platão concebeu o mundo das ideias, ou desde que Maniqueu concebeu o mundo em apenas dois lados: o bom e o mau. Ou mesmo desde antes disso tudo. Está aí uma ideia forte: a dualidade. Ter, não ter. Ser, não ser. Viver, morrer. Salvar-se, condenar-se. Querer, não querer. Estar feliz ou não.



Não tenho a menor dúvida de que não se é feliz. Felicidade não é para mim uma essência; é um estado. Um momento ou vários momentos fugazes derivados de ações humanas dirigidas ou não: uma palavra, um abraço, uma companhia, uma conquista, uma realização, uma correspondência... qualquer coisa que coincida com o bem-estar da alma, do espírito, do corpo. Talvez seja isto: algo que desperta a integração de espírito, alma e corpo, de tal modo que nos faça sentir a nossa plenitude.



Às vezes a gente acende holofotes, canhões de luz sobre um ponto e investe nele energia, consome milhões de metros cúbicos de uma hidrelétrica que quase seca. E esse ponto se apaga. Outras vezes, sob uma vela que ilumina um textinho singelo brota um poderoso raio de luz que ofusca e cega. Alguns, de tanto tentar, querem desistir. Outros vivem flertando com a esperança, querendo apenas ter água pra beber e luz pra enxergar. Nem de mais. Nem de menos. Só o bastante para estar feliz e fazer feliz.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Morrer só



Perdi hoje uma pessoa que foi muito importante para aquilo que vim a ser em dois dos papéis sociais que exerço: o paterno e o acadêmico-profissional. Só sou pai hoje, porque a primeira filha dele é a mãe das minhas filhas. Só tenho o título de doutor hoje, porque ele bancou financeiramente meu primeiro semestre de mestrado. Claro que tive tempo de agradecer e dar o devido reconhecimento à participação dele na minha vida. Os degraus do destino, sempre conduzido por humanos, nos separou. Já não o via havia anos, embora sempre perguntasse como estava.

No Hamlet, a frase que mais me encanta não é a famosa "ser ou não ser: eis a questão", mas a "morrer, dormir não mais". Na vida, às vezes os percursos nos fazem ir deixando de ser. Vão nos fazendo deixar de ser para uns. Vão nos fazendo deixar de ser para outros. Muitas vezes, esses percursos vão nos fazendo deixar de ser para nós mesmos. E isso é triste. É muito triste porque, uma vez nesse estado, não haverá dia ensolarado que não esteja banhado de cinza.

Foi o caso dele. Depois que se aposentou, perdeu o bonde da história. Lembro, agora com uma saudade triste, das muitas histórias de quando ainda se andava de bonde por São Paulo. Tantos percursos, tantas histórias. Ele sempre foi absolutamente ativo, trabalhava muito, cerca de 70 horas semanais, como sempre dizia. Depois de se aposentar, embora tenha tentado um trabalho autônomo aqui, outro ali, sucumbiu. Cedeu à diabete, sua hérnia passou a atacá-lo mais, seu sentido passou a variar.

De repente, um pouco menos que de repente, passou a se ver só. Passou a viver só. Passou a ser só. Sozinho habitava aquela casa imensa que ele se orgulhava de ter construído. De vez em quando saía para consultas médicas, ou para entregar jornais, ou simplesmente por sair. Perdeu-se pelas ruas. Reencontrou o caminho e passou a andar com o próprio endereço no bolso. Alguém percebeu que ele já não saía mais. 1 dia. 2 dias. 3. Foi neste endereço que ele foi encontrado. Já tinha deixado de ser. E ele, que gostava de dormir, desta vez, não acordou mais. Entre o ser e o não ser. Ele é lembrança, mas não é presença.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Marcas de tudo



Há um aplicativo para smartphone que tenta fazer a gente acertar as logomarcas. Ele é rápido e exige da gente muita concertação. É gostoso jogar, mesmo que errando muitas vezes no começo. Com o tempo, as marcas que não tiverem sido acertadas vão sendo memorizadas e, por conseguinte, ficando cada vez em menor número. Em decorrência, vai-se mudando de fase, superando, chegando a níveis mais difíceis e tendo nos degraus anteriores apensa marcas, parcas dificuldades que não interessam mais.

Agora, com os dias quentes chegando ao fim aqui em São Paulo, muita gente vai percebendo que as marcas adquiridas com a exposição ao Sol em praias, piscinas, rios, lagos e lajes. Marcas de biquíni - ora maior, ora menor. Marcas de sunga ou de bermuda. Marcas de camiseta regata - aquela coisa bonita que fica no ombro. Marcas de camiseta normal - que faz aquela onda no pescoço... Com o tempo, vão se homogeneizando à cor da pele e se tornam frágeis como um sol pálido de inverno.

Cicatrizes também são marcas interessantes. Pelo menos interessantes para se refletir a respeito. Sobre o modo como elas foram originadas, sobre o que elas representam, o quão feias ou bonitas são (a depender do cirurgião ou das quelóides que às vezes se formam). Cicatrizes são livros de história sem palavras escritas ou audíveis. Com toda certeza, são marcas. Importantes marcas das quais muitas vezes esquecemos, porque não faz sentido olhar para elas sempre. Ficam esquecidas como o eco de uma dor.

Hoje uma aluna que eu não contatava havia quase dez anos me localizou pelo Facebook e me mandou uma mensagem relatando suas lembranças de aulas e das marcas que ficaram nela a partir do conteúdo das aulas, bem como das conversas que tivemos. Mal sabe ela, mal sabem todos os meus alunos, das muitas marcas que deixam em mim e que constituem o que eu sou - como uma cicatriz, como uma marca de sol, como uma logomarca de mim mesmo.

terça-feira, 15 de abril de 2014

O tempo dirá



Um poema erroneamente atribuído ao escritor argentino Jorge Luis Borges, chamado Instantes, revela uma pessoa que, aos 85 anos, percebendo-se cega e já no fim da vida, nota um alto grau de arrependimento em relação às coisas que deixou de fazer, como brincar com crianças, andar na chuva, dar mais atenção aos problemas reais e menos aos imaginários... Enfim, à beira da morte, lamenta-se pelo que não fez.

De igual teor foi a conversa com uma professora hoje, na descida da escadaria da escola, rumo à sala dos professores. Dizia ela que deveria ter estudado mais e desenvolvido mais hábitos de leitura enquanto era jovem. Isso, segundo ela, teria diminuído a dificuldade que ela tem hoje em lidar com a carga de leitura e escrita em sua pós-graduação. Disse a ela que esse é o tipo de coisa que ela só tem condição de pensar agora. Àquela época, suas prioridades eram outras e seu pensamento era imediatista. Os momentos têm de ser respeitados. As escolhas feitas só podem ser interpretadas à luz de seu próprio contexto.

O último atendimento que fiz no escritório hoje foi bom por um lado, mas decepcionante por outro. Bom, porque pude ensinar o garoto a fazer definições. Ele não conseguia construir definições para espaço, paisagem e território. Essa foi a parte boa. A ruim foi quando ele me mostrou o boletim do primeiro trimestre. Não houve sequer uma matéria em que tenha sido aprovado. Já o havia alertado para este perigo com alguma frequência, uma vez que não me trazia a agenda de estudos individuais - na qual pelo para registrar o que já aprendeu e o que ainda tem dificuldades.

Não o fez. Não pôde, portanto, administrar sua aprendizagem, de modo a tornar-se responsável por ela e sujeito dela. Pudera, tem 12 anos. Não tem 85, não está cego nem à beira da morte. Não está em curso de pós-graduação. Não tem ainda condições de perceber que está deixando de fazer algo que poderia torná-lo mais capaz, mais eficiente, mais eficaz. Mas quem disse que ele o quer? Pode ser erro meu imaginar que ele deveria fazer o que sugeri. Pode ser que não. Quem sabe? O tempo o fará dizer. Ou não.

O velho novo velho




De vez em quando a gente é pego de surpresa com um evento, um acontecimento, uma fala, um sei-lá-o-quê que surpreende a gente. Ao ocorrer isso, uma série de sentimentos se apoderam de nós momentaneamente: perplexidade, surpresa, estupefação. Não é bem o novo que surge diante de nos, mas o velho que nos revisita. Com ou sem roupagem nova, tira a tranquilidade de nosso cérebro e exige uma readequação.

A cidade de São Paulo, que vem sofrendo com o calor e com uma seca que já dura meses, foi vítima hoje de uma queda mais do que brusca de temperatura. A garoa molhou as calçadas e o vento gelado avermelhou os narizes descobertos. Sim: quem saiu sem blusa de frio com toda certeza sentiu sua temperatura cair vertiginosamente. No final da tarde, passei a contemplar o que não via há tempos. Cachecóis, por exemplo, eram fartos hoje nas ruas. E são belos, um adereço que realmente dá um ar de nobreza à pessoa.

Pessoas também têm este dom de nos surpreender. Embora seja incomum, acontece com alguma frequência o fato de uma pessoa, com a qual a gente costumava se relacionar há anos numa amizade desinteressada, passe a demonstrar interesse muito além do normal e a tratar a gente de um modo estranho ao habitual: passa a estar mais próxima, telefona, manda mensagem, convida e faz planos. Coisas que antes ocorriam do modo mais escasso possível.

Por sua vez, o outro lado disso também ocorre. Quando menos se espera, uma pessoa conhecida há pouquíssimo tempo, mas intensamente valorizada, passa a integrar as relações da gente como se habitasse um espaço que nunca havia sido dela - fazendo-o com a naturalidade de um filho, de um irmão. Ela habita um em espaço em que o piso, os móveis, a cor da parede, o gesso o teto e os lustres passam a ser o que há de mais comum e de mais próprio da gente: a casa.

domingo, 13 de abril de 2014

Alma lavada de amizade



Tem horas na vida em que a gente quer mais é ver os amigos. É olhar pra cara deles e esperar uma palavra engraçada, um desafio, uma palavra amiga, um atrevimento, um abraço, um xingamento carinhoso... qualquer coisa que nos afaste um pouco ou um tanto do que tiver sido uma semana pesada de trabalho. Foi bem isso este final de semana.

Ao finalizar uma semana inteira de trabalho intenso, voltei para São Paulo e ainda trabalhei na manhã do sábado. Mas à tarde, ah, à tarde pude ir a um encontro de ex-alunos da escola em que trabalho. Foi tamanha a felicidade de reencontrar pessoas, que é algo indescritível. Além de outros colegas professores que já não estão mais conosco, pude rever ex-alunos com os quais pude estar há 16 anos. Hoje, têm 30 anos de idade. Todos formados, trabalhando, cuidando da própria vida e lembrando de fatos que vivenciamos naqueles tempos.

Depois, saí dali direto para a casa de um grande amigo meu. Ele e a esposa organizaram um chá de bebê (mas não tem chá de comer... tem?). Tentavam havia muito tempo um filho. Veio agora, há poucos meses, uma menina linda. isso pudemos ver no ultrassom de 4 dimensões. Minha emoção foi saber que ela vai se chamar Gabriela. Isso não seria nenhuma novidade, se não fosse a informação que me foi dada. O nome é em homenagem à minha filha: Gabi. Comovente.

Para findar o dia, voltei para casa e, enquanto escutava o temporal cair, tomava um banho e me preparava para um outro encontro com uma turma de amigos que se encontra uma vez por mês e atravessa a noite conversando, rindo, jogando, comendo e bebendo. Desta vez, emendamos o clarear do dia com um breakfast. Resultado: havíamos chagado lá por volta das 22h. Saímos às 11h. Alma lavada pelo contato que a amizade traz.

sábado, 12 de abril de 2014

Na rua. Na lua.



Faz doze horas que cheguei de uma cansativa, mas prazerosa viagem, na qual tive oportunidade de aprender e de ensinar. Pudera: era um evento de Educação. Cheguei a São Paulo às 15h e atendi meus alunos de Orientação de Estudos até as 20h. Nessa hora, minhas filhas me telefonaram para perguntar se eu poderia ir buscá-las de uma festa à qual estavam indo naquele momento. Com o maior prazer do mundo, claro que fui buscá-las (fazia uma semana que não as via). É justamente desta festa que estou voltando agora, às 3h30.

Assim que saí com o carro, meu olhar foi atraído por uma luminosidade arredondada no céu, meu prateada, meio amarelada. Grande, envolta em luz, soberana no céu. Radiante, a lua se mostrava a quem quisesse ver. Nem uma estrela atraiu meu olhar. Entre semáforos e esquinas, meu olhar escorria sobre ela, como água de chuva no para-brisa do carro em movimento. Ruas e avenidas desertas contrastavam com meu olhar super-habitado de admiração. Literalmente "ad + miração", porque eu lançava meu olhar sobre ela.

Me lembrou Chico César: "Se você fosse lua, dormiria contigo na praia, entraria contigo no mar, choraria teu minguante, seguiria teu crescente, habitaria teu luar". É assim o fascínio da lua sobre mim, desde que, quando ainda menino, adorava ler sobre a ida do homem até ela. Sou de 68; Armstrong pisou a lua em 69. Não sei: talvez eu olhe pra lua mais que ele hoje - por razões óbvias. Quisera eu uma lua cheia de si mesma iluminando minhas noites todo dia.

Mas não há brilho maior do que os dos olhos de minhas filhas. A cada vez que nossos olhares se cruzam, sinto a vida brotar, a esperança renascer, uma satisfação imensa pela existência dessas meninas que, sob a mesma lua que eu, seguem a vida colhendo felicidades. Como Armstrong, a gente também vai passar. Enquanto isso não se dá, o que vale é contemplar o brilho de quem amamos e brilhar junto.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Then easy, Barrichelo



Certa vez, quando estava em plena avaliação da Defesa de Mestrado de uma aluna na PUC-SP, ao encaminhar o final da minha arguição, quis dar um conselho à candidata. Minha intenção era dizer a ela que, muitas vezes, as pessoas não conseguem vencer as barreiras do olhar limitado e, por isso, não vislumbram o esforço tantas vezes sobre-humano que às vezes fazemos para realizar algo. Desse ponto de vista, tornam-se ferrenhas críticas e capazes de atirar pedras para um telhado frágil como vidro.

Comovido, disse-lhe isso por meio de uma metáfora presente na música de Maria Bethânia (A força que nunca seca), na qual ela diz que muitas vezes não percebemos o corpo torto da mulher que carrega água na cabeça. Vemos apenas que água lhe escapa da lata. Daí a criticar alguma incompetência dela é muito fácil. O difícil é valorizar o tamanho esforço do corpo que redobra suas forças para conseguir um pouco de água. Água que poderá saciar a fome de seus filhos ou cuidar da limpeza da casa, das louças, roupas etc.

À nossa volta há inúmeras pessoas que andam metaforicamente com os corpos desalinhados, com sua coluna em escoliose. Independentemente disso, a despeito do cansaço que insiste em saltar das latas que carregam e em se impregnar no seu semblante, firmemente respiram fundo, estampam um sorriso no rosto ou uma gargalhada, alinham o corpo cansado... e, heroicamente seguem.

Esta semana foi pródiga em mostrar isso. Do primeiro ao último dia de um evento voltado para o trabalho com a linguagem, coordenando dezenas de pessoas oriundas das mais diversas regiões do Brasil, vi duas moças de espírito riquíssimo e de corpos e inteligência capazes de realizar 13 Trabalhos de Hércules, a fim de trazer água com saber e com sabor para tantos de nós que precisávamos cuidar da limpeza de nossa casa acadêmico-profissional. Nada de "Then easy", por que não foi nada fácil. Nada de Rubens Barrichelo, pois vamos, no nosso próprio tempo, aprendendo com elas.