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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Amizades tipo...

Há talvez quase duas décadas, Gilberto Gil lançou a conhecidíssima música Cérebro Eletrônico, uma música cuja letra comparava as capacidades de um computador e as de um ser humano. "O cérebro eletrônico faz tudo, faz quase tudo, mas ele é mudo. O cérebro eletrônico comanda, manda é desmanda. Ele é quem manda, mas ele não anda".

Muitas são as experiências pelas quais podemos comprovar os infinitos avanços que o advento da internet trouxe. Avanços que o "cérebro eletrônico" propiciou às nossas vidas, facilitando algumas coisas, eliminando outras quase completamente. Dizer que hoje é impossível afirmar que ninguém mais está longe de resolver muitas coisas a distância seria demais. Seria um exagero, claro, mas nem todos o tomariam como absurdo.

Há alguns anos me vi dobrado por este pensamento: se não fosse a internet, provavelmente eu jamais voltaria a encontrar meus amigos; eu não teria sido encontrado por eles, como aconteceu. Em um desses finais de ano, recebi mensagem de dois grandes amigos que eu não via há décadas. Pudemos marcar um jantar inesquecível para contar algumas histórias que, um pouco, cada um de nós já havia esquecido.

Nesta semana, visitaram-nos aqui um pai e sua filha. Ela, uma já antiga amiga de minha filha. Amizade feita pela internet e cultivada por muito tempo dessa maneira, até o final do ano passado, quando promovemos o encontro de ambas. Não só a amizade delas se fortaleceu, como também entre os familiares de lá e de cá nasceu uma relação agradável de cumplicidade, de parceria na educação, de respeito mútuo, que transcendeu o nível virtual, materializou-se e hoje dá sinais de que, independentemente da modalidade, a essência da amizade é o que importa. 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

A memória emocional

Em geral, são muito engraçadas as letras de Partido Alto. Quem ouviu Moreira da Silva, Bezerra da Silva e Dicró que o diga. Atualmente, Zeca Pagodinho tem sido um dos que mantêm em alta esse estilo de samba. Como se acredita que "brincando é que se dizem as verdades", nas letras de Partido Alto se diz bastante coisa séria, tanto no âmbito pessoal, quanto no social. É o caso dos versos: "Pimenta pode ser da mais ardida, pois no meu peito já houve ardência maior".

Há momentos que a gente já tomou tanta pancada, tanta lambada, tanta rasteira, tanto "préstenção" da vida, que até no meio de uma situação dessas, a gente consegue forças para alçar a cabeça para fora d'água e inalar um pouco do oxigênio que está fora dela. Num dos momentos mais difíceis que enfrentei, tive um amigo que passava por situação semelhante. Toda semana, almoçávamos juntos, como esteio um do outro para que nenhum dos dois morresse afogado.

Volta e meia, situações ruins se colocam diante de todos nós. Só que, como decorrência da sobrevivência às intempéries de vida, a gente já está mais fortalecido, mais calejado, mais protegido contra os golpes que  virão certeiros de lugares incertos. E aí é bem a hora de acessar a memória emocional capaz de dizer: pode vir, porque "no meu peito já houve ardência maior".

Outra alternativa é justamente ceder ao ataque dos pensamentos ruins, que descaracterizam nosso espírito e riem das nossas forças, que nos assolam bruscamente como serial killers ou como areia movediça que nos puxa lentamente até não ser mais possível inalar o oxigênio que está para fora dela. É preciso ativar a memória das nossas vitórias, daquilo que nos eleva, que nos dá fôlego e nos faz olhar para frente.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Escolher é

Escolher pra quê? é o título de uma música com a qual aprendi que "Escolher entre chuva e sol é o mesmo que sofrer de hérnia e correr uma maratona de 100 passos de animais. Pra que tanta indecisão, se o sol está aí para nos assar? Pra que tanta indecisão, se a chuva inunda e alaga, como um grande mar?"

Eu pararia o texto por aqui, apenas com esta citação ao Catatau, vocalista, guitarrista e compositor da banda Cidadão Instigado. Pararia como se estivesse participando de uma corrida. Na corrida, tem uma hora em que o corpo fala: Meu! Chega... Uma outra voz interna, de outra parte do corpo, responde: Cara! Dá pra dar mais uma volta. Daí, tem jeito não: é hora de escolher.

Escrevi esta semana toda sobre corrida, sobre as impressões que me vêm enquanto corro; escrevi sobre coisas que penso enquanto corro - ou será que corro enquanto penso. Corro pra pensar? Penso pra correr? Ou será que corro pra não parar? Ou ainda, que penso (umas coisas) para não pensar (outras)? Sei lá, a gente corre e pensa, a gente pensa e corre, a gente pensa que corre, a gente pensa que pensa.

Não sei, não. Sei. Sei que a hérnia dói. Indescritivelmente dói. Ora por razões físicas. Ora por razões psicológicas. Ora por ambas. Não sei, não. Sei. Sei que o sol está aí e assa todo mundo todo dia. Um pouco mais, um pouco menos. Mesmo que a gente se proteja um pouco, o sol não deixa de nos assar. Não sei, não. Sei. Sei que a chuva - e esta estamos vendo bastante (agora, inclusive) - inunda e alaga, como um grande mar. Tenho o privilégio conviver com três hérnias, muito sol e muita chuva.


O amanhã que não vem

"Meus amigos dedicaram a vida lutando pelo amanhã. Mas o amanhã não veio. Estão todos mortos." Esse é um trecho que Victor Hugo coloca na boca de um de seus personagens em Os Miseráveis, texto que já li, peça que já vi, filme a que assisti. Uma visão romântica, e bastante crítica, dos acontecimentos relativos à Revolução Francesa.

A frase me lembra três coisas: um verso do Cazuza, outro do Gart Brooks e, por fim, um lamentável acontecimento que transformou em mensageiro da morte uma pessoa que era exemplo de vida. O verso de Cazuza, falando da perda de amigos, é o da música Ideologia: "Meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder". O do Gart Brooks, falando da possível perda de uma pessoa amada, cogita a seguinte possibilidade: "if tomorrow never comes". Por fim, a terceira lembrança é do recente assassinato ocorrido na casa de Oscar Pistorius, na África do Sul.

Por enquanto, Pistórius é réu no processo de julgamento da morte da modelo Reeva Steenkamp. Mas em breve, ao que tudo indica, ele passará da condição de réu à de condenado. Não me interessa aqui o julgamento, mas o fato de que Pistorius, que sempre foi um modelo de vida, no sentido da superação de dificuldades extremas, passou a ser a representação de algo abjeto. Ele, biamputado, enchia de esperança outras pessoas (sobretudo, atletas), mostrando por seu exemplo que se poderia crer num amanhã.

Assim como as pessoas motivadas por Pistorios, Reeva, a então namorada de Pistorius, também teve interrompida a chegada do amanhã. Ela, que vivia um período ascendente em sua carreira e que iria passar por uma ótima exposição em um reallity show, teve seus sonhos interrompidos (ao que tudo indica) por seu namorado, no dia dos namorados. Seja do que for, de uma pessoa amada, de um objetivo ou de qualquer que seja o sonho, é sempre muito triste quando o amanhã não vem.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Mal nenhum, bem algum

No auge de seu sucesso, do reconhecimento de seu trabalho como compositor, cantor e intérprete, Cazuza também vivia o auge da doença que o ceifou deste nosso mundo tão precocemente, assim como tantos outros contemporâneos seus. Por essa época, um de seus sucessos estourava nas rádios: a música Mal Nenhum, cujo refrão diz: "Eu não posso causar mal nenhum a não ser a mim mesmo, a não ser a mim".

Quero pegar o verso do poeta e concordar parcialmente com ele, sobretudo, porque parece haver uma visão individualista na ponderação que ele faz. Caso seja verdade que nesta música especificamente ele esteja se referindo ao consumo de drogas, o mal que ele faz não se restringe a ele. Fisicamente pode recair mais sobre ele, é verdade. Mas psicologicamente, muitos sofreram ao vê-lo entregue, vencido pela doença, definhando-se praticamente ao vivo. Morrendo ao vivo, se me permitem o triste paradoxo.

Tristeza à parte pela perda do ídolo de muita gente, quero agora pegar o verso em seu contrário, isto é, eu posso causar bem algum a muita gente. Inclusive a mim mesmo. Em minha corrida desta semana, cheguei com um propósito: baixar o tempo que levo para correr 1 Km. Não sou nenhum corredor profissional. Corro apenas por gosto e para dar ao meu corpo (menos do que eu deveria, infelizmente) melhores condições de encarar o dia a dia.

Foi ótima a experiência, pois consegui baixar em quase trinta segundos o tempo que eu levava para dar uma volta naquela pista do Museu do Ipiranga. Quisera eu ter essa determinação para fazer-me esse bem outras tantas vezes quantas forem necessárias - tanto física quanto psicologicamente. A mim, sem dúvida, e também a outras pessoas. Isso porque sei que posso fazer bem a mim e aos outros.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Palavras que correm

"Não pense que a cabeça aguenta se você parar", cantava o bom e velho Raul em uma de suas músicas que mais me marcaram há 11 anos: Tente Outra Vez. Foi um momento em que profissionalmente eu precisava ouvir o refrão dessa música várias vezes. À época, meu carro deve ter-se enjoado de ouvir. Eu, não.


No entanto, o que me interessa hoje não é o refrão, mas o verso com que iniciei este texto: "Não pense que a cabeça aguenta se você parar". E eu estou de novo de acordo: pode parar, não. Tenho essa sensação quando estou correndo, porque para mim é muito claro que minha cabeça corre tanto quanto, ou até mesmo mais do que eu. Assim que eu "dis - paro", ela também começa a bater perna, começa a galgar um percurso que eu nunca sei qual será.



E fico assim, dias pensando menos no que favoreci minha musculatura geral, minha respiração, minha pressão, minha resistência, e mais nos intrincados caminhos por onde minha cabeça me leva. As pessoas que passam por mim, mesmo sem me dirigir qualquer palavra, parecem verdadeiros textos codificados por sua vestimenta, seu biotipo, sua postura, sua velocidade, sua intensidade.



Tenho a impressão de que são espécies de oráculos, de mensageiros, de portadores textuais que têm a mim como depositário de um discurso que eu mesmo preciso ouvir. Ou que minha cabeça precisa considerar. Enfim, penso que se eu parar, a cabeça não aguenta. Logo, começo a considerar que minha corrida é uma forma de eu não parar, de minha cabeça não parar. Correr não é preciso, assim como viver. Correr é preciso, assim como navegar.

Para onde se olha ao correr

"Pra frente é que se anda" é um verso de Chico Buarque. Não é qualquer um, até porque é difícil dizer que ele tenha escrito qualquer um verso, e muito menos um verso qualquer. A música em que tal verso se encontra é um diálogo longo, colocado num ritmo de samba triste com falas carregadas de tristeza - por um lado - e de tentativa de incentivo - por outro. Um atento ao que ficou para trás; outro querendo impulsionar para frente.

Maestria para compor músicas com diálogo assim, só me lembro de outro carioca igualmente genial: Paulinho da Viola, com a magistral Sinal Fechado. Coincidência ou não, esta música tornou-se conhecida em um disco do Chico Buarque. E é bem isto mesmo: se é pra frente que se anda, também é pra frente que se corre. Seja em pistas físicas, seja em pistas da memória.

No domingo passado, enquanto corria meus parcos quilômetros e deixava minha mente também se exercitar movendo-se para longe da direção dos compromissos cotidianos, passei por um casal que fazia sua caminhada. O senhor e a senhora caminhavam para frente. Eu corria para frente. Por um momento, enquanto eu seguia pista adiante, minha mente parecia voltar-se para contemplar, por meio da imagem daquele casal, a história que estava para trás.

Havia naquelas passadas perenes uma história, independentemente do que possa representar muito ou pouco tempo. Havia um conjunto de acontecimentos bons e ruins, celebrados e não; havia ali momentos festivos e momentos de crise; havia ali uma pista que ambos tinham percorrido e que justificava o fato de estarem  naquela pista física, passando por mim, para me ensinar que pra frente é que se anda - por mais que o passado fique incrustado na gente. 

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

De curvas e curvas

"Se você pretende saber quem eu sou, eu posso lhe dizer. Entre no meu carro e na estrada de Santos você vai me conhecer" - cantava Roberto na década de 70 um sucesso que, anos depois, foi refortalecido e imortalizado pela Elis. O disco em que essa música foi gravada originalmente se chama "Roberto Carlos canta para a juventude" - daí a temática e a letra características.

A música fala de corrida também, mas uma outra corrida: "Você vai pensar que na minha idade só a velocidade anda junto a mim". Mas não é dessa corrida que quero falar, mas daquela que se faz a pé, sentindo o corpo e a alma baterem pelo chão firme e regradamente, tentando se fortalecer a cada passada, tentando produzir massa muscular e aumento e resistência.

Não são poucos ali na pista que estejam acima, bem acima, do peso. É impressionante como enfrentam os mil metros paulatina e arduamente, com passos curtos que destoam do movimento dos locais em que existe uma maior concentração de tecido adiposo. A despeito do grande risco de lesões articulares, são pessoas cujo esforço é extremamente grande, porque além do trajeto, das muitas passadas e do cansaço que normalmente é produzido pela corrida, elas têm de segurar com as próprias articulações o sobrepeso.

Elas não estão apenas fortalecendo a musculatura, queimando calorias e dando um grande sinal de persistência nessa empreitada. Antes, elas estão exibindo a força de sua alma para buscar uma condição física melhor; estão queimando energias ruins, pensamentos negativos e comodismo. Estão vislumbrando a cada passo dado a possibilidade de um corpo mais pronto e disposto para os grandes desafios ao espírito.
É como se estivessem convidando para que as acompanhássemos pela Estrada de Santos "onde o tempo é cada vez menor". 

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Correr pra quê?

"Em minha calça está grudado um nome que não é meu de batismo ou de cartório. Um nome...estranho. Meu blusão traz lembrete de bebida que jamais pus na boca, nessa vida...". Gosto deste poeta das frases curtas e lancinantes, simples e contundentes: Drummond. Mineiro de Itabira foi lembrado por mim enquanto corria na pista do Museu do Ipiranga.

Sempre que vou correr, saio de casa cedinho, disposto, entro no carro, ligo o rádio para ouvir um rock clássico enquanto dirijo por 5 minutos até o Museu. Desde a chegada, sob o sol ainda pálido e o chão ainda fresco da manhã, é possível ver um farto e variado conjunto de pessoas. Enquanto faço meus 20min de alongamento, mesmo concentrado no movimento dos músculos que estico, observo os que passam.

Um sujeito pelo qual passei a poucos metros do início da pista chamou-me a atenção. Não. O sujeito não: o que estava correndo com ele. Ou melhor: aquilo com que ele estava correndo. Boné e camiseta: ambos brancos; ambos da Nike. Da mesma marca eram as meias e o tênis. Para proteger os olhos daquele sol que banhava a todos, mesmo quando passávamos sob as copas das árvores, ele ostentava óculos escuros Ray Ban. Sobre seu corpo estavam cerca de R$1500 a R$2000 Reais em artigos esportivos. Tinha mais.

Em seu braço, um aparelho para monitorar os batimentos cardíacos. Marca? Não sei. Em sua mão, brilhava um I-phone branco, ao qual estava conectado um fone, que parecia isolá-lo do som ambiente das passadas e das respirações ofegantes dos que passam cansados por nós. Nada contra. Nada mesmo: acho que as pessoas devem estar felizes como acham que devem estar para isso. Mas isso me fez pensar sobre o real motivo daquele rapaz para estar correndo com todo aquele aparato.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

O tempo da corrida

Vou começar hoje uma nova porta de escrita para os textos deste blog, que curto muito fazer e, muitas vezes, é um diálogo comigo mesmo. Aqui, a cada postagem, falo coisas que eu gostaria de ouvir, falo coisas que eu gostaria de falar a quem quisesse ouvir. Hoje, enquanto corria, ocorreu-me a ideia de escrever crônicas. E o legal é que o tema geral já veio junto: crônicas de corrida.

O Museu do Ipiranga é um lugar fora do comum em termos de beleza externa e interna - isso sem contar o Parque da Independência, que fica logo à frente. Mas aqui me interessa o que está atrás do Museu: uma pista de cooper - 1 km completamente arborizado e com um frescor inigualável; tem trechos de cascalho, trechos de terra e um pequeno trecho (cerca de 200m) que atravessa a frente do próprio Museu.

Nesse trajeto, enquanto se anda ou se corre, além de contemplar as muitas árvores e o sol que se esgueira por entre elas e faz sombras desenhadas no chão, é possível contemplar as pessoas que correm à nossa frente, que caminham em direção oposta à nossa, pessoas se exercitando nos aparelhos laterais à pista... pessoas. Um hoje me chamou a atenção.

Numa mesma volta, avistei um simpático velhinho que fazia sua caminhada tão lenta e calmamente, que passei por ele umas três vezes na mesma volta. Camisa pólo listrada de azul e branco, bermuda azul escuro, meia e tênis brancos, ele me fez pensar sobre a importância de a gente respeitar o tempo da gente, a despeito da velocidade com que o mundo gira ou corre. Talvez não seja preciso ir tão rápido com certas coisas na nossa vida. Talvez seja preciso ir rápido, sim, para depois poder andar devagar curtindo mais as árvores, os cascalhos, a terra, as sombras e as frestas de sol do que a própria corrida em si.

Costume de se acostumar

Hoje terminou oficialmente o horário de verão. Assistia absolutamente envolvido a uma série de episódios do Supernatural com minhas filhas quando, em um dos pequenos intervalos, resolvi olhar o relógio e tomei um susto - não por uma cena do filme, mas pelo horário mesmo. Achando que ainda era ontem, já era hoje. Eu já havia me acostumado ao horário de verão.

Na verdade, não foi ao relógio que eu consultei, mas ao telefone celular. Já me acostumei a ver as horas nele  - e não mais no relógio de pulso. Às vezes, mesmo com o relógio no pulso esquerdo e com o telefone na mão esquerda, é a este que eu consulto. Quando quero ver alguma data, nada de folhinhas de calendário impressas e postadas na mesa, na estante, na parede ou na geladeira: é ao telefone que consulto. Agenda, também. Dicionário, também. Calculadora, também. Jornal, também...

A gente se acostuma. Nos casos que exemplifiquei acima, o que leva a gente a se acostumar é a praticidade, é a facilidade de estar com tudo à mão. Com simples cliques ou deslizes na tela, alcançamos tudo em questão de segundos. Na verdade, muitos são os motivos que fazem a gente se acostumar com as coisas que nos fazem bem. Ou, pelo menos, que não nos fazem mal.

Muitas vezes, a gente se acostuma com o que nos faz mal. Perdas, mudanças de situação para um âmbito desfavorável, enfim, a gente se acostuma até ao que é ruim. Eu, um dia, me surpreendi ao me ouvir dizer que já estava acostumado à minha dor nas costas, decorrente das três hérnias lombares e da sacroileíte que às vezes me limitam os movimentos. Mas, neste momento, algo me parece um fato: a gente acostuma a se acostumar.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Adianta o atraso?

"Sempre em dia com o seu atraso" é um dos muitos versos chocantes de Lobão. Versos que sempre me intrigaram e intrigarão cada vez que eu me lembrar da música Decadence avec Elegance. Até no título ela produz uma espécie de choque no raciocínio, porque parece criar um paradoxo. Decair com elegância e estar em dia com o próprio atraso são pensamentos que põem no mesmo tablado o progresso e o regresso.

Pus-me saudavelmente a impulsionar meus pensamentos sobre os nossos atrasos que estão sempre em dia. Poderíamos nos arriscar a olhar para as coisas que fazem parte de nós, que têm nosso corpo como morada, que têm nossa mente como cama, nosso coração como clausura. Tem tanta coisa que está parada nesses recônditos aparentemente dinâmicos. Tem tanta coisa que gostaríamos de colocar em dia. Deve haver uma força muito grande nelas ou uma certa fraqueza ou conivência nossa diante delas.

Sei é que "relógio que atrasa não adianta", como canta a velha e boa senhora Marrom - a Alcione. O fato incômodo é que parece haver no nosso pulso um relógio cujos ponteiros engasgam sempre no mesmo ponto de cada volta. Tropeça sempre no mesmo segundo. E assim, ainda que pareça estarmos com tudo o que precisamos, ainda que tenhamos um relógio, não estamos no timing em que deveríamos estar para ir mais longe, para estar em dia, para estar a par e passo com o correr da vida.

Assim como adiantar é colocar as coisas à frente, colocá-las diante do momento, do espaço ou seja lá do que for; atrasar é colocá-las para trás ou fazer com que fiquem para trás. É claro que nem tudo tem que estar à frente; é claro que algumas coisas oscilarão de posição nesta corrida da vida. Entretanto, estar sempre em dia com o próprio atraso parece ser uma espécie de comodismo, de conformismo, laissez faire.

Sensação de brilho

"Não desespere: quando a vida fere, fere, e nenhum mágico interferirá. Se a vida fere com a sensação de brilho, de repente a gente brilhará". Quem, entre os adultos, não se lembra desses versos de Gilberto Gil, que eram bombardeados nas rádios há cerca de 20 anos? Alguns versos para mim atravessam o tempo, rompem a barreira do som - no sentido de saltarem de uma simples canção e se tornarem uma forma de ensinamento.

Considerando um sujeito como Gilberto Gil que sacudiu a música popular brasileira e se fortaleceu naqueles famosos festivais com a magistral Domingo no Parque; Gil, um sujeito que - com Caetano, Tom Zé e outros foi o mentor do Tropicalismo; Gil, que passou por maus bocados sob os olhares tensos e intensos dos operadores da Ditadura Militar e que, por eles mesmos, foi exilado do Brasil; Gil, que há até pouco tempo foi ministro da Cultura... Enfim, considerando que os versos vêm desse respeitável senhor - hoje no alto de seus 70 bem vividos anos - não há razão para deixar de atribuir todo o valor merecido aos seus versos.

Fica a torcida para que a vida, que não dorme nem pestaneja, possa nos ferir com a sensação de brilho, para que a gente, de repente, brilhe. "Não mais que de repente", para que não seja um brilho fugaz, de pouca intensidade, de pouca significação; um brilho que depois não deixa sequer rastros ao longo do curto caminho que tiver percorrido.

"Gente é pra brilhar", canta Caetano, seu conterrâneo. E o faz com toda razão, porque há em nós uma espécie de luz, mais ou menos intensa, mais e menos intensa, mas uma luz. Uma luz que ilumina o nosso próprio caminho e o de outros. Ou o contrário. O que importa é que estejamos abertos para que a vida possa nos ferir "com a sensação de brilho".

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Tributos ao vivo

"Nothing compares to you" é uma das músicas do Prince que eu ouço até cansar. Literalmente, até cansar. Ou até aparecer algo que me obrigue para de ouvir. Seja interpretada pelo próprio Prince ou pela Sinead O'Connor, vale muito a pena ouvir em razão da qualidade dos arranjos, pela melodia e harmonia perfeitas (a meu ver/ouvir), pelo andamento lento, pelas possibilidades de vocalização. É triste a letra; fala de perda.

Quando se perde alguém (algo, não; algo é diferente), é muito difícil - senão impossível - repor. As funções eu até acredito que sejam substituíveis a contento, mas as pessoas, essas eu acho que não. Daí a perda fica um bicho grande, e muitas vezes se rendem verdadeiros tributos em gestos, palavras, canções, desenhos etc. Tenho aqui em casa alguns tributos impagáveis, como o feito a Freddie Mercury e o que se fez a George Harrison. É daqueles que, como a música de Prince, eu contemplo até à exaustão.

Mas os tributos não são só para pessoas grandes e famosas. Gosto de um verso do Celso Viáfora: "Salve Ronaldinho e Zeca Pagodinho. Salve todo mundo que arrasa e tem a fama que merece. Salve Ronaldinho! Salve Dona Jece, que trabalha em casa, que também arrasa e tem a fama que merece". Pois é: ele homenageia a própria empregada, a Dona Jece.

Com uma frase atribuída ao nosso rei do futebol: Pelé, que teria dito: "se querem me homenagear, que o façam enquanto eu estiver vivo", é importante lembrar que não é necessário estar morto para haver homenagem, para haver tributo. Ninguém se compara a ninguém, todos têm a sua importância, todos arrasam e têm a fama que merecem. Por isso, e porque me honram com sua amizade, merecem meu reconhecimento público. Aos amigos antigos e recentes, bem como aos que ainda estão por vir, meu tributo.

Dias sim

"Dias sim, dias não, eu vou sobrevivendo, sem um arranhão, da caridade de quem me detesta". São versos cantados por Cazuza no auge de sua carreira e de sua doença. Sem dúvida alguma, uma figura importantíssima para a nossa música, sobretudo, nos anos 90. Nessa música, na qual faz uma série de protestos contra injustiças socialmente praticadas, ele chama a atenção para a intermitência, para o aspecto intervalar que algumas coisas, que de vez em quando dão uma parada.

Neste feriado de Carnaval, fiquei sem postar texto algum aqui no blog. Foi um período em que muita coisa aconteceu, tanto nos desfiles das escolas de samba, quanto fora deles. O espetáculo das escolas no Rio e em São Paulo. Os trios do Carnaval de rua de Salvador e Recife. Amanhã, quarta-feira de cinzas, o período carnavalesco terá sua parada normal.

Tudo se manteve como sempre nos desfiles. Entretanto, fora dele, algo que desde 1415 jamais havia acontecido. Quem esperaria a renúncia de um Papa? Em sã consciência, ninguém. Ainda mais em se tratando daquele que substituiu o, talvez, mais aceito, mais benquisto, mais reconhecido e mais popular dos Papas: João Paulo II - o polonês Karol Wojtyla. Essa, com toda certeza, não foi uma parada normal.

A idade o fez parar. Reconheceu que não tinha mais condições de levar adiante todos os afazeres que o cargo lhe confere. Se o fim de seu mandato foi inesperado, o fim do Carnaval não o foi. Mas é isso: às vezes, uma parada é necessária. Ora dentro da normalidade, ora não, ora com regularidade, ora com intermitência. Independentemente de serem "dias sim, dias não", à parada deve seguir o firme propósito de continuar. A partir de amanhã, volto a postar diariamente aqui. Dias sim e dias sim.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Continuar sendo

Quem desconhece Ivete Sangalo? Difícil. A mulher surgiu como vocalista de banda e logo viu que aquilo era pequeno demais para ela. Ao seguir carreira solo, cresceu tanto, que é conhecida em todo país e até em alguns países estrangeiros. Sempre vou lembrar dela menos pelos sucessos que ela emplaca e mais por uma experiência familiar interessante e curiosa, sobretudo, para um pai que se delicia com a linguagem das filhas. Quando bem pequena, minha filha cantava: "o porco do dedo mandou avisar que vai rolar a festa!". Difícil não achar graça na interpretação, que certamente caracteriza a construção do verso de acordo com se conhecimento vocabular.

Certamente Ivete canta hoje em vários espaços em Salvador, sobre o trio seguido por milhares de pessoas motivadas a cantar, pular, dançar por quilômetros a fio, dando ao corpo um libertar de adrenalina que deve se igualar (se não superar) o total de adrenalina que será disparada no corpo ao longo do ano todo. Intensificado com música alta, companhias agradáveis, álcool e (não se nega) outros estimulantes, o momento do Carnaval propicia a vivência de uma alegria fugaz e extremamente significativa. 

Como não lembrar de Chico? "E um dia, afinal, tinham direito a uma alegria fugaz, uma ofegante epidemia que se chamava carnaval". É direito, sem dúvida, essa alegria fugaz, que se soma às muitas alegrias menos fugazes e às alegrias perenes que frequentam a nossa vida. Refiro-me às pessoas constantes que despertam naturalmente os nossos sorrisos. Refiro-me às coisas com as quais entramos em contato no dia a dia. Sem contar (o que seria um lugar-comum dizer) a saúde que nos permite continuar sendo.

Para outros tantos, como eu, inclusive, trata-se de um período de descanso e de colocar em ordem os papéis, os livros, botar a casa em ordem, intensificar o contato com quem soma vida comigo. Tim Maia (em outro contexto, claro) diria: "vale tudo". Vale a festa exagerada desses dias que se encerram na quarta-feira de cinzas, quando tudo volta ao "normal". Vale a busca pelo sossego e pelas alegrias perenes que, espero, não se encerrem nunca.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

O sonho do sonho

"Eu sonhava como a feia na vitrine, como carta que se assina em vão", canta Oswaldo Montenegro um trecho de música que ficou bastante famosa, sobretudo, depois que foi tema de novela. Ele fala de sonhos que, em determinados contextos, apresentam-se como irrealizáveis, como utopia, como desejos tão intensos  e legítimos, quanto calados e absurdos.

Isso me parece ser típico dos sonhos, principalmente porque, de acordo com a conhecida mitologia grega (naquele conhecimento que servia para justificar o que era lacunar e para organizar a compreensão da realidade de um modo minimamente aceitável), Fântaso, filho de Hipnos, personificava o sonho das pessoas de tal forma, que as fazia confundir sonho e realidade, fazia-as fantasiar.

Mas, todos sabemos, há sonhos e sonhos. Desde os mais absurdos e (literariamente falando) fantásticos, que viabilizam seres e acontecimentos completamente fora do padrão e da "normalidade", dando um falso lenitivo aos desejos mais latentes, até aqueles sonhos mais palpáveis, mais concretos, como o de Martin Luter King ("I have a dream..."), todos os sonhos precisam ter seu lugar.

Já ouvi de amigos que, em conversas de bar, revelaram ter a condição de controlar seus sonhos. Isso, sim, pra mim foi inacreditável. Diziam não só controlar o que iriam sonhar, como também dar continuidade ao sonho de onde tivessem parado na noite anterior,e mais: de parar e redirecionar o sonho quando este não seguia o rumo desejado. Ora, ora... para mim, um simples mortal, essa possibilidade é um sonho a respeito do sonho.  Para muitos, isso é sonhar como carta que se assina em vão.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Razão para viver. Viver para razão.

"E em tudo que eu faço existe um porquê... no ar que eu respiro, eu sinto prazer de ser quem eu sou de estar onde estou". É preciso reconhecer sempre a importância da Rita Lee para a música nacional, desde seu início nos Mutantes, até hoje. Seu jeito despojado, suas verdades bem ditas, polêmicas e impactantes revelam um modo particular de viver e interpretar a realidade. Como em tudo, nem sempre há concordância... mas não pode deixar de haver reconhecimento.

Esses versos que ela canta na música Agora Só Falta Você mostram uma pessoa que se cansou do estilo de vida que levava e "um belo dia resolveu mudar e fazer tudo que queria fazer". Por isso, se libertou "daquela vida vulgar" e passou a se valorizar mais do que fazia. Isso me lembra, por exemplo, aquele famoso poema atribuído a Jorge Luis Borges, intitulado Instantes, no qual se revela um amargo arrependimento de quem chega perto dos 90 anos e, ao olhar para trás, vê que deixou de fazer muitas coisas que queria.

Me lembra também o pai da soul music brasileira, o mestre do gingado, da voz firme e de refrões inesquecíveis... o síndico: Tim Maia. Na música Azul da Cor do Mar, ele diz que se tem de "achar razão para viver, ter na vida algum motivo pra sonhar, ter um sonho todo azul, azul da cor do mar". É mesmo necessário ter uma razão para viver - o que não constitui novidade alguma, mas reverbera uma verdade às vezes esquecida - consciente ou inconscientemente.

Ter essa razão, ou, ainda, "uma ideologia pra viver" (Cazuza) talvez seja aquilo que, em meio a tantos estímulos negativos que reforçam as pressões, as obrigações e os desprazeres, vem trazer no próprio ar que se respira o prazer de ser quem se é, de estar onde se está. Não me parece ser algo que se explique assim tão racionalmente, pois não se trata de viver para a razão, mas de razão para viver.


Novidade

"É tudo novo de novo". Este é apenas um dos muitos versos deste que é mais que um compositor de músicas bonitas, de harmonia, de melodia, de arranjos agradabilíssimos: é um poeta. Além disso, é apresentador de um programa de televisão - chamado Zoombido -, entre tantas outras habilidades. Vou ficar aqui com a de poeta. É legal que, em meio a tantos atributos artísticos, ele mesmo reconhece a humildade humana, quando diz que "não somos mais que uma gota de luz".

Pouco ou muito, famoso ou anônimo, cada um de nós tem a capacidade de se renovar sempre. De se fazer novo de novo, a despeito da senilidade que não bate à porta para nos visitar, a despeito dos anos que trazem marcas de experiências, transformadas em cicatrizes, em rasgos e rugas. Apesar de tudo isso, é possível fazer-se novo de novo.

Esse é o desejo de quem já dobrou umas dezenas de anos. Quer renovar, quer reiniciar, quer dar um novo princípio que volte a dar cor à tela que desbota, dar brilho à luz vitimada pela opacidade, dar calor ao arrefecido cotidiano e dar uma nova graça para o lábio cansado de sorrir. Engraçado perceber que, se é assim para os que já avançaram em idade, não o é para os mais novos.

As crianças e os adolescentes - filhos, parentes, amigos, alunos - têm em tudo à sua volta algo realmente novo. É tudo novo pela primeira vez. Novo aqui. Novo agora. Seu desejo talvez não seja de renovar, mas de viver intensamente o novo. Com seu olhar, que fulgura expectativas; com sua vibração que soa e ressoa canções em novos arranjos; com sua aquarela que flerta e reflete cores vívidas, como gotas de luz que clareiam o adulto que virão a ser... para fazer tudo novo de novo.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Um acordo para acordar acordes

"Eu te amo calado, como quem ouve uma sinfonia de silêncio e de luz" é uma comparação muito bem feita por Lulu Santos na música Certas Coisas. Eu a escolhi hoje para falar sobre a necessidade de haver um acordo para acordar acordes.

Adormecidos e silenciados, recalcados sob o som da respiração noturna, ora regulares ora ofegantes, alguns acordes deixam de encantar a vida do que vive. Deixam de soar no dia a dia espalhando graça pelos locais que normalmente eles tocavam com seu alcance discreto, mas significativo. Param de compor uma melodia que servia de motivação para tanta coisa.

Escurecidos e apagados, escondidos sob a falta de luz que habita a parte posterior das pálpebras, alguns acordes deixam de iluminar a vida do que vive. Deixam de brilhar no dia a dia espalhando cores pelas pessoas que normalmente eles destacavam com seus matizes discretos, mas absolutamente vívidos. Param de  compor uma tela que servia de estímulo para tanta coisa.

É preciso urgentemente que se faça um acordo. Cada um consigo próprio. Um acordo para acordar os belíssimos acordes que, por adormecidos ou escurecidos, deixaram de ser ouvidos. Faz-se necessário encontrar as notas que os compõem e dispô-las harmônica e melodiosamente para que a sinfonia ecoe espalhando vida, como a arpa de Orfeu.


segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Perseverar

Meu avô, com muita insistência, sempre passou para suas filhas três valores que ele julga fundamentais, inalienáveis. Um deles é o da perseverança. Psicologicamente, perseverar é a capacidade de sustentar voluntariamente uma atividade implicada por uma tarefa prolongada.

Só quem persevera, por severa que seja a luta, sabe das abnegações, das contrariedades, das buscas de ar quando o fôlego parece dar sinais de esmorecimento. Só aquele que persevera por si vela a contemplação da recompensa. Não necessariamente futura, como fazem muitos que oferecem prêmios a perder de vista, e até a perder de vida.

Mas não é assim para quem persevera. É bem provável que esse guerreiro, é bem possível que esse baluarte da insistência, é bem capaz que esse highlander dos tempos modernos seja um visionário que enxerga aqui o lá. Que enxerga perto o longe. Que enxerga o "nunc" latino e não o nunca português. Nunc, em latim, significa "agora".

Seu prazer, sua glória, seu prêmio, sua coroa, seja lá o que for que o motiva, está na luta. E não necessariamente na vitória. Já que falei do latim, é bom lembrar que "severo" é o aspecto daquilo ou daquele que é firme. O prefixo "per" dá a característica da completude. Persevera, portanto, aquele que é totalmente firme em seus propósitos; aquele que, mais do que aonde quer chegar, sabe onde ele efetivamente está.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

A esquina das coisas

Em um dos poemas mais conhecidos de Fernando (Nogueira) Pessoa, ele diz que "o poeta é um fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente". Embora essa seja a parte mais citada do poema, hoje me atenho à última estrofe, na qual ele afirma que "nas calhas de corda, gira a entreter a razão esse comboio de corda que se chama coração".

Muito diferentemente de pessoa para pessoa e época para época, chega um momento da vida em que as pessoas acreditam estar em pleno domínio de suas emoções e se gabam disso, como se tivessem superado uma das maiores etapas de sua vida, como se tivessem passado do Romantismo de segunda geração para o Realismo, período em que a razão reina suprema.

Entretanto, a vida tem uma série de esquinas nas quais sempre há algo pelo qual temos a impressão de ter passado várias vezes - o que nos dá a sensação de que nunca esbarraremos nele ou tropeçaremos ou escorregaremos. Mas, é justamente nesses locais em que a gente bate a cabeça, torce o tornozelo ou engancha uma parte da roupa.

E é nessas horas que as cordas do coração, como piano, como violão, como fado, soam a canção da memória que desperta acordes que surpreendem a razão. Aí é que se tenta fingir ser dor  a dor efetivamente sentida e se percebe que Romantismo e Realismo não são coisas diferentes, mas complementares. Aí é que se vê que em vez de mais coisas nas esquinas, talvez haja mais esquinas nas coisas.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Das distrações

"Muito pra mim é tão pouco. E pouco é um pouco demais". Gosto de todos os versos desta música do Paulinho Moska, especialmente porque nela é possível perceber como a linguagem utilizada de forma simples, e com seus paradoxos naturais, pode revelar tanta verdade. Mas hoje o que me fez lembrar dessa música foi uma experiência da qual tomei conhecimento.

Estava o sujeito cozinhando contente, achando-se "o chef", a fazer um prato relativamente simples. Daqueles que não requerem prática e tampouco habilidade. Lá pelas tantas, enquanto ouvia música e cantava e cozinhava e dispunha panelas etc., chegou a hora de o sujeito colocar óleo. Abriu seu armário e pegou um frasco de plástico pelo meio, abriu a frágil tampa e despejou o líquido na comida que ele preparava. Foi só quando o cheiro subiu, que ele percebeu que aquele frasco não era de óleo, mas de vinagre.

Depois de rir do relato, eu disse que a história me lembrava a notícia daquela enfermeira que injetou vaselina, em vez de soro, na veia da paciente. Naturalmente, com agressão tamanha ao corpo, a paciente não resistiu e, como dizem os técnicos, veio a óbito. Puxa, vida. Uma distração. Tão pouco. Opa! "Pouco é um pouco demais".

Guardadas as devidas proporções, o muito e o pouco não são medidas assim facilmente mensuráveis, ainda mais se colocadas em contextos diferentes. Sentir-se senhor da situação ou não estar devidamente atento a ela pode resultar em muitas situações um pouco complicadas e/ou em poucas situações muito complicadas.