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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Falar ao coração

Gosto do timbre de voz do Lulu Santos, da sua musicalidade e de muitas de suas letras. Tudo isso junto eu admiro, por exemplo, na música Certas Coisas, em que ele diz que "tudo que cala fala mais alto ao coração". Essa história de falar ao coração sempre me encantou, ainda mais para mim que há quase vinte anos falo à razão dos meus alunos.

E era justamente "falando" pelo celular com uma aluna hoje, via face, enquanto eu almoçava depois de sair de minha aula de canto, que tive novamente esta sensação de falar ao coração de alguém. É muito boa essa sensação, porque o discurso vibra em lugar diferente, parece sair do coração. Meu Deus!, quanto isso parece ser pedante, piegas, brega. Mas pouco posso fazer se esta é a realidade que vejo: parece dar a certeza de que o que falo vai diretamente ao coração de quem ouve. Ou melhor: neste caso é de quem lê.

Pois  bem. Esta menina, concluinte do 9º ano, pôde aprender os primeiros passos de poesia. Ensinei à turma toda a parte técnica de metrificação, rima, ritmo etc. Mas este não era meu foco. Era, antes, ressaltar aquela possibilidade diferenciada de dizer as coisas; era aquele universo levemente acima deste mundo material em que todos gastamos nossos dias; meu foco era mostrar aos meus alunos que há outros canais de expressão que eles podem acessar para vestirem suas ideias.

No último dia de aula, ela me trouxe um poema que ela mesma compusera. Não tardei em elogiar, em destacar a beleza dos versos, o arranjo das palavras, a musicalidade do texto. Mal viu ela o quanto me controlei para domar a emoção que me tomou naquele momento diante dos outros alunos. Hoje, ela me mandou outro poema, enquanto eu almoçava pensando no que escrever hoje neste blog. Outro poema muito bonito dela. Fiz-lhe dois pedidos: que se deixasse ser conduzida mais vezes pelas palavras para dizer coisas simples, de modo que pudesse fluir sua ideia em forma de poema uma vez por semana. Orientei que amadurecesse o pensamento nos primeiros dias e que escrevesse e me enviasse o poema ao final de cada semana. A segunda coisa que lhe pedi foi que lesse o poema "Procura da Poesia", de Drummond.

Vida besta?

"Eta vida besta, meu Deus". É assim que Drummond conclui o poema Cidadezinha Qualquer. Depois de afirmar que "Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham", ele fecha com esta chave de ouro: "Eta vida besta, meu Deus". 

Esse itabirano sabia das coisas. Se, por um lado, reverenciava as características da vida no interior, especialmente no plano das relações pessoais e familiares, por outro - como se lê em Sentimento do Mundo, Drummond clamava contra o que não fazia sentido no mundo. Um olhar local que não perde o global. E vice-versa. O um e o todos. O um no todos. Para ele, de besta, a vida não deve ter nada.

Esses versos dele vêm à minha mente agora neste final de dia em razão de uma experiência que vivenciei no final da tarde. Quando a vida da gente vai entrando num ponto em que ou tudo vai muito devagar ou em que tudo vai muito depressa... tão depressa ou tão devagar, que começa a perder o sentido, parece-me ser a hora de colocar o pé no freio. Ou no acelerador - dependendo do caso.

Coloquei-me hoje numa situação que há muito acalentava, mas que não tinha tônus suficiente para dar o primeiro passo em direção à mudança. Como dizem, o primeiro passo é o mais difícil de todos. Mas, uma vez dado para nos tirar da chamada "zona de conforto", é preciso dar o segundo passo, o terceiro... até reajustar a vida àquilo que acreditamos ser o melhor. É preciso lançar-mo-nos aos desafios que abrem perspectivas fascinantes; desafios que vão nos colocar à prova; que fazem a vida deixar de ser besta.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Quem acredita

Uma das músicas do Renato Russo que pegam as pessoas pelo refrão simples e forte é a "Mais uma vez". Ele inicia a canção afirmando que "Mas é claro que o sol vai voltar a brilhar mais uma vez" e, depois de algumas estrofes, ele emenda o refrão "Quem acredita sempre alcança". Aquele "Mas", aparentemente sem sentido por não ter nada antes dele para fazer oposição, opõe a afirmação que o segue a toda uma crença negativa que puxa a pessoa para baixo, para o insucesso. É como se o poeta estivesse respondendo a alguém que pensasse "Acho que o sol não vai mais brilhar para mim".

Há muitos posts, afirmei aqui que um dos meus principais objetivos de vida é cumprir meu papel de oferecer às minhas filhas as condições necessárias para que cresçam saudáveis, fortes, honestas, responsáveis, determinadas e, sobretudo, felizes. Eu acredito nisso e sei que vou alcançar. Tomando apenas o ponto de vista escolar, uma delas já cursa o Ensino Médio - vai agora para a segunda série (a penúltima série de sua formação básica). É curioso: nesses dias, temos conversado sobre vestibulares,  faculdades, profissões... "Ainda outro dia", a gente discutia com muito gosto o cardápio da semana para a lancheira. O tempo passou e fortaleceu aquilo em que acreditamos.

Já a menor, depois de esperar pacientemente este momento, viaja daqui a pouco com sua turma para comemorar o fechamento de um ciclo - o do Ensino Fundamental II. Está indo feliz e muito merecidamente, porque - embora faltem alguns dias oficiais para o encerramento das atividades curriculares - ela soube conduzir o ano de modo a chegar ao seu final com as duas mãos no triunfo. Taí uma pessoa que não desacredita, motivadíssima sempre, cheia de energia para superar dificuldades - sejam elas de que natureza forem.

Penso, e aprendo com minhas filhas, que acreditar seja uma atitude, um gesto de quem tem o olhar fixo em algo (sem descuidar de si e do seu entorno) e caminha na direção desse algo, desse objeto sobre o qual se deposita esperança, pelo qual se renovam as expectativas, algo a que se atribui crédito, algo, por fim, em que se acredita.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Sempre mais

"Eu quero sempre mais! De ti", canta a banda Ira!, na inconfundível voz do Nazi, acompanhado da Pitty, em uma gravação especial para o Acústico da MTV. É muito legal acompanhar bandas assim: como Titãs, Paralamas e outras, o Ira! gravou um acústico dando mais de si. A gente sempre espera mais das coisas de que a gente gosta.

Não somente das coisas, mas (e principalmente) das pessoas. Sim, elas têm sempre algo a mais para dar. E, na verdade, acho que em nossas relações interpessoais há dois movimentos que sustentam esse "dar sempre mais de nós". O primeiro é o nosso desejo de manter um clima tão agradável na relação, que não nos importa doar um pouco mais de nós. Aliás, isso não incomoda mesmo. Pelo contrário. O outro movimento é o da pessoa que gosta da gente. Ela vê sempre algo mais, porque tem gosto em nos descobrir, em desvendar o modo como somos.

Curioso é que esse doar-se sempre mais, considerando esses dois movimentos (ora consciente, ora não) quase nunca está relacionado a valores materiais. Não estou falando aqui de dar uma flor hoje, um vestido amanhã, uma brilhante depois... não, não: isso é pouco. E já disse aqui (em outros posts) que essas coisas materiais perdem valor rapidamente pela insaciedade voraz de quem recebe. Esse doar-se sempre mais a que me refiro pode estar nos gestos mais singelos e despretensiosos.

Um olhar mais sustentado; um minuto a mais de atenção; um sorriso espontâneo e gratuito; um abraço mais demorado ou mais forte; um gesto de carinho; uma palavra de incentivo; um elogio inocente; uma crítica pertinente; um comentário acertado; um ombro amigo, um "sou todo ouvidos"... são formas de a gente dar um pouco mais de si para quem a gente gosta.

domingo, 25 de novembro de 2012

Do brilho

"Nobody knows where you are, how near or how far. Shine on you crazy diamond" são versos que compõem uma das mais bonitas músicas do Pink Floyd. Ela foi escrita em homenagem a um dos membros da formação original da banda - Syd Barrett - que, apesar de sua genialidade ou em razão de sua genialidade, escolheu percorrer intensamente caminhos que trouxeram escuridão ao brilho que dele emanava. Não se sabia mais se aquilo que dele se via era ele perto ou ele longe. Era um "ele" sem luz.

Como as coisas podem parecer simples e serem tão imensamente complicadas? Todo mundo sabe que a nossa vida é o resultado das escolhas que fazemos a cada momento. Todo mundo sabe quando corre riscos que vale a pena correr... e sabe os riscos que podem ser fatais. Talvez resida aí o problema: saber todo mundo sabe, mas muitas vezes o saber e o querer não falam a mesma língua. Suplantando a razão, a vontade se faz prevalecer e dá a algo um brilho extremamente intenso, capaz de cegar a razão... um brilho que redundará em escuridão.

Nisso tem algo de paradoxal, tão paradoxal como a beleza do canto das sereias, que emudece por completo a voz de alguém que apostou nele a possibilidade de brilhar mais. Parece loucura, mas a escuridão iminente que abocanha a vida de alguém se disfarça de objeto brilhante e irrecusável justamente para tirar o brilho daquele que se curva aos seus pés.

É curioso ver como luz intensa ou ausência de luz fazem a nossa vista ficar debilitada, tão depauperada que se torna incapaz de saber o que está subjacente. Daí decorre que o cérebro vai interpretar aquilo apenas com as informações de que ele dispõe - razão pela qual muitas vezes alguém deixa de brilhar como diamante e passa a ser pedra comum. Tão comum, que ninguém mais sabe onde ele está, quão perto ou quão longe. Assim como Syd Barret.

sábado, 24 de novembro de 2012

Nossa casa interior

Num dos períodos mais difíceis que já enfrentei, tive a feliz oportunidade de conhecer a música de um poeta mineiro - de nome estrangeiro: Vander Lee. Ele ficou famoso quando as rádios passaram a reproduzir sucessos seus como "Esperando aviões" e "Românticos". Mas naquele momento da minha vida, eu gostava de ouvir a música "Meu jardim".

Reproduzo aqui uma parte: 
"Tô soprando minha brasa, minha brisa, meu anjinho.
Tô bebendo minhas culpas, meu veneno, meu vinho.
Escrevendo minhas cartas, meu começo, meu caminho. 
Estou podando meu jardim. Estou cuidando bem de mim".

Afora a estrutura triádica dos primeiros versos, muito me encanta o fato de se podar o próprio jardim e também o de cuidar bem de si. Nem tudo que cresce em um jardim deve estar grande, irregular ou muito exposto. Podar isso tudo às vezes se faz necessário, para que o jardim fique mais coerente consigo mesmo e, portanto, mais bonito. Para si, para os outros. Suas cores, sua harmonia, seu aroma, a suavidade de folhas e pétalas serão o sinônimo da vida que exala dele.

Tem uma rua aqui perto de casa, por onde passo sempre muito tarde da noite, voltando da Universidade. Quando estou nela, abro as janelas do carro e diminuo a velocidade. Naquele ponto do trajeto, a escuridão da noite é banhada pelo aroma das flores de jardins cultivados ali. Assim são os jardins bem cuidados: espontânea e naturalmente, dão aos outros, inclusive a desconhecidos, o gosto de existir a cada momento.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

"Pare ser"

"Parece que é, mas não é", dizia o slogan de um antigo produto para cabelos - Denorex. Quem é da minha idade vai se lembrar bem. O produto, cuja embalagem parecia ser de shampoo - mas não era - foi muto popular à época. Quem olhasse para o frasco sem a devida atenção, acreditaria estar vendo um frasco de shampoo.

Quando eu dava uma aula sobre interpretação da realidade, contaram para mim a história  de uma senhora que ao voltar do trabalho tarde da noite e passar por um lugar (à época) afastado, escuro e rodeado por cerca de arame farpado, tremia. O medo a assaltava impiedosamente, sobretudo, quando sobre uma ou mais das estacas que formavam a cerca tinha presa em si uma sacola plástica ou um saco de papel - daqueles de padaria. Nada demovia aquela mulher de que, no breu da noite, aquela estaca coberta por uma sacola, não era uma pessoa ou uma assombração.

Por mais que os olhos dela vissem a forma estranhíssima que em quase nada lembrava uma silhueta humana, não tinha jeito: ela via uma forma de homem. E por optar ver assim, mesmo antes de chegar àquele lugar, já era vitimada pelo medo, pelo pânico, que fazia sua pulsação triplicar, sua respiração quase congelar, seus músculos enrijecerem e suas pernas ficarem prontas para... voar.

O que é, é. E o que não é, não é nem pode vir a ser. Isso diziam os filósofos pré-socráticos numa tentativa de interpretar a realidade de modo unilateral - o que era um tanto adequado para sua época. Mas hoje, em tempos de pós-modernidade é difícil definir o que é ou o que não é, uma vez que as coisas não são, mas estão sendo. É assim com todas as impressões que temos, do mundo exterior e também do interior de nós mesmos. As coisas que julgamos ser, podem não ser. E vice-versa. Ou não.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Verdades e Veredas

"Diga a verdade, doa a quem doer; doe sangue e me dê seu telefone", canta Humberto Gessinger - dos Engenheiros do Hawaii na música intitulada Piano Bar, que tem versos tão impressionantes quanto esse que utilizei para abrir a reflexão. Há situações em que verdades simples precisam vir à tona; há situações em que verdades complexas precisam vir à superfície mostrar sua face - doa a quem doer. Quando elas vêm, abrem-se veredas certas; quando não vêm, abrem-se certas veredas.

Quando adolescente, fui demitido de uma empresa por seu presidente (e dono) num dia em que eu gentilmente cobria a falta de um funcionário. Fui procurado por um cliente que precisava falar com o presidente. Pedi um tempo para que eu o localizasse. Ao localizá-lo e avisar do cliente que o queria ver, o presidente me mandou dizer àquela pessoa que ele não estava. Mandou-me mentir. Ou, para usar um eufemismo moderno: mandou-me faltar com a verdade. Não gosto quando a verdade falta. Muito menos quando eu faço a verdade faltar. Ora, o presidente não titubeou e, ao final do dia, desligou-me da empresa.

Muitas verdades vêm à luz de modo muito prazeroso e encantam os que as ouvem. Outras verdades vêm de forma mais dolorosa, saindo das profundezas da nossa existência, como vegetação viçosa que se esgueira por fendas que jorram pequenos feixes de luz. Vêm como o grito da dor de uma fisgada muscular. Vêm como hálito de faminto. Vêm como pequeno ponto putrefato de uma fruta. São verdades que, embora todo mundo desconheça, fazem questão de latejar na nossa cabeça ou de brilhar no escuro do quarto "à meia noite, à meia-luz".

É como diz o mesmo Humberto Gessinger, na mesma música, inclusive: "Toda vez que falta luz, o invisível nos salta aos olhos". Com ou sem luz; à meia noite ou ao meio dia; com ou sem dor... que seja dita a verdade, porque as verdades abrem veredas de escolhas certas, de integridade, de coragem, de sinceridade.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Herança

Quase todas as cerimônias de formatura têm algo em comum (além dos discursos, das becas, dos canudos e dos chapéus jogados para cima): a música "Como nossos pais", do Belchior. Interpretada com mais intensidade pela Elis Regina, a letra dessa música tem um verso que soa como um hino dos formados. Salvo engano meu, eles o cantam como se estivessem anos-luz à frente dos que os geraram, mas eu tenho a impressão de que o verso diz o contrário disso: "Minha dor é perceber que, apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais". Em outras palavras: reproduzimos os pais. 

Ora, se viver e ser como os pais for algo digno, legítimo, edificante... que não paire dúvida: é bom ser e viver como eles. O gosto pela vida; o respeito a si, ao outro e ao mundo; o cultivo de bons valores; a valorização do que é justo e verdadeiro; a batalha honesta pela vida; enfim: tudo aquilo que torna a existência melhor deve ser conscientemente herdado com muito orgulho dos pais. O interessante é que essas coisas não se entregam em aulas, não se compram em mercados, não são sorteadas. Antes, são produto de muitos ensinamentos que se dão mais na prática do que na teoria.

A vida consentiu que meu pai se retirasse do nosso convívio quando eu ainda tinha entre 4 e 5 anos. Minha referência masculina passou a ser meu avô - que hoje, beirando seus 90 anos, nos deu a graça de sua presença e a beleza de seu sorriso transparente, sincero e carinhoso. Vê-lo para mim é sempre uma alegria muito grande, porque nosso amor é recíproco. O tanto que observei este homem na minha infância e o quanto ouvi dele depois de adulto me dão claras noções do tipo de vida que devo levar, do tipo de valores que devo cultivar.

Naturalmente meus pensamentos me conduzem agora para o que minhas filhas herdarão de mim. Para as coisas que não lhes foram entregues em aulas, nem compradas no mercado ou sorteadas. Para o que elas perpetuarão daquilo que puderam absorver no convívio comigo. Para a herança imaterial e imarcescível que está sendo construída nelas dia após dia. Para o que elas tiverem apreendido do meu modo de ser e de viver, e que, por conseguinte, influenciará o modo como elas serão e viverão.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Palavras para ferir

"Eu não sei dizer nada por dizer", canta Ney Matogrosso na música "Fala". São palavras que sempre norteiam o que digo e o que escrevo. Não gosto nem um pouco quando não há sabor nas minhas palavras, quando não há vida nelas, quando não há essência, enfim: quando são palavras que seriam satisfatoriamente substituídas pelo silêncio. Palavras cuja ausência sequer seria percebida.

Claro: se não gosto de falar ou escrever palavras insossas, insípidas, também não suporto ouvi-las ou lê-las. Acho mesmo que é pela palavra que a gente move o mundo, que a gente se move e move os outros (e vice-versa, claro). Nesse sentido, penso como Belchior, ao cantar suas palavras tão incisivamente: "eu não sei cantar como convém, sem querer ferir ninguém". Aqui está a beleza da palavra latina "fero", que significa justamente o movimento de "levar" ou "trazer" algo a alguém: um golpe, um gesto, uma palavra.

Há palavras que parecem ter o peso de uma realidade muito maior do que a do simples som que as reveste. Algumas trazem o aroma da vida. Ou o odor da morte. Outras há que acariciam nosso rosto como se fossem brisa molhada pelas ondas do mar. Outras há, ainda, que parecem mover o chão aos nossos pés, arrastando as placas tectônicas das nossas certezas, das nossas crenças, dos nossos sentimentos. Palavras que nos tomam pelo ombro e nos agitam como folhas de árvores penteadas pela ventania.

Como é possível "ferir" por meio da palavra, é preciso cuidar para que ela conduza boas coisas a quem nos ouve ou nos lê. Mesmo que seja palavra ríspida, árida, dura, ela deve promover o bem, a vida. Deve edificar, deve "a bem soar". As coisas estão por aí, nas mais diversas formas de existir. Como canta JQuest, "tudo está parado esperando uma palavra. Diz aí".

sábado, 17 de novembro de 2012

O que me interessa

Nesses dias, tenho tido o incomensurável privilégio de estar intensamente ao lado de pessoas que eu amo demais. Viver tão bons momentos ao lado de pessoas tão queridas, que nos despertam os melhores sentimentos e que tornam minúsculos gestos em exorbitantes expressões de amor e carinho, é realmente viver. A todas elas, diria aqui o que disse Lenine, na música "É o que me interessa". Com todo o respeito que tenho por esse artista, mais uma vez tomo aqui emprestadas suas palavras:


Daqui desse momento
Do meu olhar pra fora
O mundo é só miragem
A sombra do futuro
A sobra do passado
Assombram a paisagem.
Quem vai virar o jogo
E transformar a perda
Em nossa recompensa
Quando eu olhar pro lado
Eu quero estar cercado
Só de quem me interessa.
Às vezes é um instante
A tarde faz silêncio
O vento sopra a meu favor
Às vezes eu pressinto e é como uma saudade
De um tempo que ainda não passou
Me traz o seu sossego
Atrasa o meu relógio
Acalma a minha pressa
Me dá sua palavra
Sussurra em meu ouvido
Só o que me interessa.
A lógica do vento
O caos do pensamento
A paz na solidão
A órbita do tempo
A pausa do retrato
A voz da intuição
A curva do universo
A fórmula do acaso
O alcance da promessa
O salto do desejo
O agora e o infinito
Só o que me interessa

Ave Vitae

A maravilha
De amar a vida
Ávida
Devida
Invade a ilha
Abre trilhas
Avenidas

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Greves graves

Rodrigo Santoro está entre os atores brasileiros mais competentes, tanto em sua carreira local quanto na internacional. Entre os filmes em que ele atuou (como "300 de Esparta", "As panteras" e outros) eu prefiro os nacionais, como "Bicho de sete cabeças" e "Abril despedaçado". Já entre esses dois... a escolha é bem mais difícil, porém pelo que gostaria de desenvolver aqui, vou escolher o último. E, depois, o primeiro.

"Abril despedaçado" conta histórias de famílias que, no árido Nordeste brasileiro, gastam seu tempo na elaboração e execução de emboscadas para matar, por vingança, membros de outra família, que também mataram por vingança. Decorre disso um derramamento de sangue que, de tanto acontecer, passa a ser tido como normal, como parte da norma. Dessa forma, um grão de areia que incomodou um bisavô - de tanto ir e vir na ventania da vingança - vira um imenso rochedo que esmaga o bisneto.

Greves que são feitas em universidades públicas e particulares brasileiras guardam alguma semelhança com o que descrevi acima, na medida em que questões de natureza política e administrativa que envolvem apenas certos cargos e funções, em vez de serem resolvidas em seu devido âmbito e com a devida competência dos dirigentes, acabam se tornando uma imensa parede que desaba sobre quem está sentado, querendo estudar.

Dias, semanas, meses em que a ventania das greves gasta e desgasta a base de uma participação social estudantil que poderia ser extremamente mais bem aproveitada se tomasse uma forma menos grave, uma forma grávida de bons ventos. É preciso desviar o curso daquele grão de areia que vai se tornando em rochedo esmagador, em um "bicho de sete cabeças", que nem os 300 de Esparta conseguem deter.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Horas gastas bestamente

A expressão "horas gastas bestamente" é parte de um poema de Elisabeth Bishop, que - dada uma significativa sincronia - me foi enviado por ocasião da minha postagem de ontem. Lindíssimo, o poema trata de perdas como algo sem mistério, como nada sério, como arte que deve ser aceita. Isso para qualquer coisa: desde algo de valor material, a algo como as "horas gastas bestamente".

Ao ler o poema, senti-me gratamente acrescido na reflexão muito simples que havia feito ontem. Lembrei-me de Vinícius de Morais, no Monólogo de Orfeu (da peça Orfeu da Conceição - que já tive o privilégio de representar no teatro), que em uma arrebatadora confissão de amor para Eurídice, sua amada, faz referência ao inesgotável prazer que lhe dá a presença de sua querida, quando ela vem com aquela "charla antiga" e lhe traz "aquele contentamento, aquele orgulho de rei..."

Quantas coisas boas me vieram à mente e me trazem agora as mesmas sensações. Tantas, tantas, mas tantas vezes me vi sozinho em um campo de futebol ou em uma quadra, ou ainda no muro da rua onde jogava, quando menino. Eu e a bola, por horas e horas a fio. Meus olhos se esbaldavam com a imagem, meus ouvidos eram massageados com o som da bola na parede, no chão ou na rede. Meus pés se deleitavam com o prazer do contato com a bola.

Tantas, tantas, mas tantas vezes me vi no meu quarto, sozinho, trocando as horas de sono pelo prazer de tocar minhas mãos nas cordas do meu violão. Aquelas cordas de nylon claras, aquela madeira fria e macia, aquele som que me dizia as palavras que eu mais queria e precisava ouvir, aquelas músicas extraídas com um limitado número de acordes... tudo aquilo (eu, a bola, o violão e o passado) foram "horas gastas bestamente", inteiramente responsáveis por muito do que sou hoje e pela imensa alegria que sinto só de lembrar. 

O perde-ganha

Fred Mercury, uma das vozes mais respeitadas do mundo, um dos compositores mais inteligentes, um dos músicos mais brilhantes que este mundo já viu, ao cantar "Love of my life", uma das músicas que são a própria identidade do Queen - sua banda -, implora: "bring it back, bring it back. Don't take it away from me because you don't know what it means to me".

É fato que o mundo canta essa música. Os cinco continentes, bilhões de pessoas conhecem "Love of my life" e cantam suas perdas. Seja lá do que for, a perda é uma experiência que machuca a quem tem um mínimo de sensibilidade. Qualquer subtração da gente, sobretudo, quando é súbita, sempre desestabiliza. E até conseguirmos botar o trem nos eixos de novo, demora. E quando conseguimos, as estrias restantes, as cicatrizes falantes provocam chacoalhes na estrutura da locomotiva.

Eu, por mim, suporto perder muita coisa. Muita mesmo. (Só não suporto mesmo é perder tempo). Feliz ou infelizmente tenho uma boa capacidade de me readequar à perda e de reajeitar a vida com aquele novo vácuo, como quem se habitua à fisgada do músculo de um membro que já não existe mais no corpo. Aprendi desde cedo - perdi pessoas, perdi oportunidades -  e hoje estou um pouco mais calejado em relação a isso.

Claro que a possibilidade de perdas ainda me traz algum receio. Mas a possibilidade de voltar a ganhar é maior do que a vontade de chorar perdas. O desejo de sorrir e de brilhar é maior do que o de me encapsular. O combustível que é a esperança me movimenta mais do que o veneno de ficar lamentando uma perda e implorando que a coisa perdida seja trazida de volta.

domingo, 11 de novembro de 2012

À sombra das coisas

Tive hoje a enorme felicidade de voltar a jogar futebol depois de uns 8 ou 9 meses. É... quase o tempo de um parto para poder voltar dividir 90 minutos com os amigos, disputando quem é, como equipe, mais capaz de fazer mais gols. O que vale mesmo é a diversão, a companhia, o exercício físico, a beleza do campo - todo gramado, com linhas e redes brancas... e o melhor: ao lado da represa. Para onde se olha, se veem paisagens lindíssimas.

Antes, porém de chegar ao campo, o trajeto já havia me despertado para pensamentos que quero compartilhar aqui. O caminho para lá é pela Rodovia dos Imigrantes. Invariavelmente, sobre nossas cabeças, imensos aviões cruzam aquela direção, indo pousar em Congonhas. Com o sol escaldante que fez esta manhã, os aviões brilhavam tanto, que rescendiam sua luz pelo espaço, com se se expandissem em si próprios.

Mas o que mais me impressionou foi notar a sombra deles passando sobre a pista que eu atravessava. Pronto: me vi à sombra de uma coisa que era absolutamente maior do que eu. Incrivelmente mais rápida e mais pesada do que eu. Do ponto de vista pragmático, mais útil, mais cara, mais um tanto de coisas. Eu, ínfimo diante daqueles aviões que se exibiam no ar, recebia por um átimo o passar lépido de sua sombra sobre mim. Comparada ao avião lá em cima, a sombra dele é mínúscula aqui embaixo.

Quantas sombras vêm na nossa direção todos os dias? Quantas coisas deixamos de valorizar, porque as julgamos menores. Quantas coisas nos foram ditas nesta vida, e das quais só enxergamos a sombra - e nos arrogamos a prepotência de termos entendido tudo. Quantos gestos foram a sombra de um grande carinho, e nós só tomamos como mais um gesto, só mais uma sombra. Como Platão alertou há tanto tempo com seu mito da caverna,  quisera eu ter a sabedoria de considerar que a sombra que se mostra a mim é apenas parte de uma realidade refletida e que merece igualmente o meu olhar atento.

Um milhão vezes quanto?

Num dos atendimentos que faço a um aluno de 8 anos, sempre visando ao aprimoramento de sua fala, audição, escrita e leitura, ele leu no alto de um capitulo os algarismos romanos. Era XIV, mas ele leu XVI. Parei, expliquei para ele por que não poderia ser 14 etc. Aproveitei e aumentei a dose: retomei os demais números - L, C, D e M. Fiquei brincando de montar: 2012 em algarismo romano; sua idade em algarismo romano... e por aí afora. Mas o danado me saiu com esta: é como é um milhão em algarismo romano?

Não. Eu não me lembrava de como era. Não tive dúvidas: perguntei se ele tinha alguma ideia de como poderia ser "um milhão" em algarismos romanos. Diante de sua negativa, perguntei se ele tinha alguma ideia de onde poderíamos encontrar aquela informação. Como a maioria dos meninos de sua geração, não poderia dar outra resposta: Google. E lá estava a resposta que fez a gente se divertir montando números e números - até decidirmos retomar a leitura de "O Pequeno Príncipe".

Aquele capítulo (o XIV, não o XVI) falava de um homem que cuidava do lampíão em seu planeta. Era ele que determinava a luminosidade do planeta, mediante os incríveis 1.440 pores de sol que havia diariamente. Para o Pequeno Príncipe, aquele homem, tão afeiçoado ao cumprimento da ordem, parecia tolo, mas no fundo era mais inteligente, mais sensível, mais útil do que muitos outros, uma vez que conseguia se ocupar "de outra coisa que não fosse ele próprio".

Já faz um tempo que lemos este livro, e ao final de cada capítulo fazemos uma discussãozinha sobre o que podemos aprender na leitura. Para ele, o significado foi um. Para outros, o significado poderia ser múltiplo: cuidar de si ao cuidar da participação de outra pessoa no que diz respeito à sua vida, amando-a, doando-se a ela, fazendo coisas por ela. É incontável o número de vezes que a pessoa amada vem à mente, é incomensurável a dimensão do bem-estar que se experimenta amando, é infinita a quantidade vezes que pronuncia o nome dela. Talvez um milhão, vezes um milhão vezes tanto.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O caminho para o triz

Chico Buarque, numa de suas mais belas músicas (Beatriz), canta que o "pra sempre é sempre por um triz". Trata-se de um verso revelador e instigante, paradoxal e inquietante, porque o "pra sempre", que tem o poder de criar uma sensação de saciedade infinita, de eternidade, de plenitude... o todo-poderoso "pra sempre" pode ser impiedosamente reduzido a um triz. Um imenso tecido de seda, uma imensa bolha de sabão, um incomensurável fio de lã... destroçado a ponto de só restar um triz.

Aliás, um triz é a figura de um fio, a mais ínfima das partes de um todo, um quase nada. O triz é o remanescente, é a leve lembrança de algo que ainda luta para existir, é o resto, é a ruína. É a letra que antecede o ponto final. É o quase fim de uma relação amorosa. Como canta Renato Russo, na música intencionalmente chamada "Por enquanto": "Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar que tudo era pra sempre? E o pra sempre sempre acaba".

Chegar ao triz é o resultado de ter traçado o caminho que foi da magnitude à quase insignificância, da plenitude à escassez, do tudo ao quase nada. Ora, se existe essa direção que faz as coisas definharem, há o caminho inverso, que transforma o pequeno em imenso, o anão em gigante, o bite em terabite. Existe o caminho do fortalecimento, da ascensão, do engrandecimento, da valorização, do reconhecimento.

Talvez aí resida o ponto inicial da fenda que corrói qualquer relação que se pretenda "pra sempre": no reconhecimento. A falta dele é (como canta Paulinho Moska) "um grão de sal no mar do céu". A falta constante do reconhecimento transforma o grão em grãos, e estes em uma avalanche que desaba e põe a relação a caminho do triz. Ora, é preciso escolher a cada dia o caminho a tomar: reconhecer o outro ou ser indiferente a ele. É preciso atender o que sugere o mesmo Moska: "deixe que o beijo dure, deixe que o tempo cure, deixe que a alma tenha a mesma idade do céu".

O amor e a Fênix

Todo mundo enfrenta (ao menos) um período de dores. Faz parte da existência, e embora pareça a morte no meio da vida, serve pra gente se fortalecer, aprender, pra gente (se) entender melhor. Naquele que foi, talvez, o mais pungente, o mais lancinante para mim, uma bela voz vestindo uma música triste tornou-se emblemática: a de Laura Pausini. "Se ami sai quando tutto finisce. Se ami sai come un brivido triste, come un film dalle scene giá viste, che se ne va". No refrão, em dueto com Gilberto Gil, ela canta: "se o amor acaba, a ninguém cabe a culpa; se o amor acaba, não cabe desculpa".

E é assim. Uma realidade cantada e recitada por tantos. Vinícius imortalizou a ideia paradoxal de que o amor "seja eterno enquanto dure". Mais recentemente, Axl Rose canta que "nothing lasts forever... and it's hard to hold a candle in the cold november rain". Nada dura para sempre. Por isso, talvez seja possível dizer que o fim do início também pode ser visto como o início do fim. Todavia, por mais paradoxal que seja, provavelmente essa verdade deva ser a maior motivação para que o amor seja vivido "em cada vão momento", como recita Vinícius - no mesmo poema acima citado.

O amor parece ser como o arquétipo da Fênix, aquele mito grego do pássaro que, quando morria, queimava-se até virar cinzas, para tempos depois renascer vigoroso, no esplendor da sua força - esbanjando vida e enfrentando novos desafios. Essa insistência, essa perseverança, essa fé na certeza de que a vida vale a pena ser vivida com amor é o que faz a gente brotar novamente e se tornar árvore frondosa, copada e frutífera.

Fecho esta reflexão com citação a um poeta e cantor mineiro, Vander Lee: "Românticos são tipos populares que vivem pelos bares e, mesmo certos, vão pedir perdão. Que passam a noite em claro, conhecem o gosto raro de amar sem medo de outra desilusão. Romântico é uma espécie em extinção" - com toda a certeza de que renascerá das cinzas, como Fênix.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Amor de longe

A educadíssima voz lírica de Marisa Monte enfeita o ar quando canta. Acaricia os ouvidos. Lembro agora alguns versos, que vêm ilustrar o que quero dizer hoje. "Ao meu redor está deserto. Você não está por perto ainda está tão perto. E longe. Amor de longe".

Embora meu filósofo predileto seja Aristóteles, vou me referir a Platão - que nos deixou muita coisa boa para pensar. Até hoje, em qualquer meio, discute-se o mito da caverna. Até hoje se discute a relação do mundo ideal/mundo imperfeito com os ensinamentos religiosos. Até hoje se discute a noção de verdade única. Até hoje se fala de amor platônico.

Amor platônico (falando assim, a pinceladas largas, grosso modo) é aquele que se caracteriza pelo sentimento intensamente vivido por uma das partes, a qual, por sua vez, sabe da impossibilidade de concretização da relação amorosa. Mesmo sabendo não ser correspondido, aquele que ama sustenta a todo custo seu sentimento por aquela que para si é uma indefectível mulher, a perfeição em pessoa, uma suserana para sua vassalagem, uma inatingível realidade. Um não-lugar (= utopia). E é capaz de se dar por feliz assim, amando à distância. Amando "de longe". E sem sofrimento. Nossa mente ocidental tem dificuldade para entender isso.

Ora, neste mundo de busca frenética pela satisfação imediata, por mais estranho que possa parecer, ou doentio, é preciso dar espaço àquele que ama e não tem a menor pretensão de ver-se obrigado a ser correspondido em seu sentimento. Ama porque ama. Àquele que ama amar. Àquele cuja razão de existir está em amar, sem que a distância da pessoa amada lhe provoque sofrimento. Àquele que ama de longe.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Despertar para a vida

Amigos, parem tudo.
Acabo de chegar de um show do JotaQuest, banda mineira que admiro muito. Tive o privilégio de estar praticamente na cara da banda, de admirar o excepcional baixista PJ e de cumprimentar o Rogério, vocalista. Há tempos não curtia tanto um show: cantei (alunos, estou rouco para  a aula de daqui a pouco), dancei, pulei. Vivenciei cada momento do show.

Mas nem um momento do show (nem um mesmo) foi tão inesquecivelmente maravilhoso quanto o que vou narrar. O evento se deu em comemoração aos 21 anos de existência da Fundação LaraMara, que cuida da melhoria da qualidade de vida de pessoas com severa deficiência visual. Começou pequenininha. Hoje atende o Brasil. Dá sentido à vida de muita gente. Coloca pessoas cegas no mercado de trabalho. Dizem eles que o melhor da vida não é visto com os olhos, mas com o coração. Afinal, beija-se de olhos fechados. Abraça-se de olhos fechados. Fala-se com Deus de olhos fechados. Suspira-se profundamente de olhos fechados. E por aí afora.

Quando o vocalista desceu do palco para falar com Lara, a inspiradora da instituição LaraMara, e ela se propôs a subir no palco e tocar a música FÁCIL na bateria, a banda não teve dúvida. Na hora de executar a referida música, ajudada, aquela moça linda, completamente cega (desculpem-me os politicamente corretos: completamente deficiente visual), enfim: aquela moça completamente cega, ajudada, pulou a grade e foi levada pelo próprio baterista ao centro do palco e sentou-se no banco atrás da bateria. Sentiu o espaço, mediu a distância dos pratos, da caixa, do bumbo etc.

Daí foi só a banda dar o acorde de Sol maior. E ela começou: tocou tão espantosamente bem, que, de olhos fechados, não se diria ser uma moça cega tocando a bateria. Rapaz: aquilo foi um gesto de amor profundo. Amor à música. Ao momento. À pulsação da vida. À superação. À super-ação. E fiquei eu pensando: cara, que ridículo que sou quando me limito a fazer certas coisas. A manifestação de amor da Lara foi um despertar de vida em mim. Como disse ontem: amar é despertar a vida. Na gente. Nos outros.

(PS: desculpem pela visualização do texto de ontem: falha minha. Mea culpa, mea maxima culpa)

domingo, 4 de novembro de 2012

A que viemos

"Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar".

São versos de Drummond, que me foram lembrados por uma pessoa muito especial, por ocasião do texto que postei ontem. E ali está o grande poeta mineiro colocando mais uma pedra no meio do nosso caminho ao dizer que o que nos cabe nesta vida é amar. É pulsar a cada dia em favor da vida. Da nossa vida. Da de alguém.

O que nos move em direção às pessoas, às ideias e aos ideais, aos bichos e às coisas? O que nos afasta de tudo isso? O que nos move para longe ou para perto de nós mesmos e dos outros? O amar, o esquecer, o mal-amar, o desamar, o amar - diria o poeta. Da mesma forma que é o amor que promove a vida, com sua força criadora, com seu poder de iluminar as trevas, de fazer os olhos brilharem, de engendrar sorrisos; seguramente é a falta do amor que mata sorrisos, que faz opacos os olhos, que apaga a luz e consome com imenso prazer o último fôlego de vida de quem (ou do que) quer que seja.

Postei aqui outro dia que o que se leva desta vida e o que se deixa para ela nada mais é do que o amor que a gente tem pra dar. Penso que seja pra isto que viemos: para amar. Para amarmos e sermos amados. Para acalmar e trazer esperança e alegria à vida do outro. Isso é o que justifica a nossa existência, porque aquele que ama dá sentido às coisas e faz a vida florescer vigorosa e pulsante. Como canta Almir Sater: "é preciso amor pra poder pulsar". Agora e sempre. Até de olhos vidrados, é que nos resta.

sábado, 3 de novembro de 2012

Amar: verbo intransitivo?

"Tornar o amor real é expulsá-lo de você pra que ele possa ser de alguém", canta Nando Reis - ex-Titãs, há alguns anos em carreira solo, com canções (letra e música) marcantes. Curto muito seus CDs e shows. No palco, aquele artista ruivo, franzino e de voz fraca se transforma, tamanha a energia que ele movimenta ao tocar e cantar.

Seria um ato de egoísmo guardar para si a possibilidade de amar? Seria amar a si mesmo? Nesse caso, estaria certo Manuel Bandeira ao intitular seu livro "Amar: verbo intransitivo"? Amar a si mesmo é necessário, como se vê no antigo ensinamento bíblico segundo o qual é necessário amar aos outros como amamos a nós mesmos. Disso todos sabem. Difícil mesmo é saber o que é amor ou o que é amar.

Quando eu era criança, havia um álbum de figurinhas intitulado "Amar é". Um monte de definições pueris. Independentemente do objeto amado (uma ideia, uma prática, um ser, uma pessoa...), por ser uma ação, amar tem pelo menos dois lados: o que ama, o que é amado. Amar é, me parece, a prática de fazer emanar algo de si para outro. É mais do que sentir; é um sentir-agir. Mais: é um ser-sentir-agir.

"All you need is love" cantavam os Beatles tão animadamente naquele encontro descontraído. Porém,  apesar de tantos poetas, filósofos e cientistas já terem tentado, o amor continua(rá) indefinido. "Por ser exato, o amor não cabe em si. Por ser encantado, o amor revela-se. Por ser amor, invade. E fim" (Djavan). Portanto, ele transita entre as pessoas.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Presente-se

Elton John já foi condecorado pela rainha da Inglaterra pelo conjunto da obra e pelo que sua música contribuiu para a imagem de seu país. Uma de suas músicas (Your Song) sempre me tocou os sentimentos porque expressa bastante do que eu podia oferecer a quem amei há tanto tempo. Isto é, muito pouco - do ponto de vista quantitativo, pelo menos. "I know it's not much but it's the best that I can do. My gift is my song and this one's for you".

O tempo passou e meu presente (ou o conjunto de presentes) durou muito tempo como canção. Depois agregou presentes mais materiais, mais socialmente valorizados, mais-isso-mais-aquilo. Assim como as canções e as palavras, muitos presentes também perdem seu valor e, por mais que sejam, tornam-se menos (ao menos na visão de quem recebe). Foi-se a pessoa, foi-se o conjunto de presentes.

Mas se há algo que me desperta grande alegria é presentear alguém. Principalmente se não estiver relacionado a aniversário, natal ou a qualquer outra data em que as pessoas se veem quase obrigadas a presentear. Quando presenteio, tenho em mente outro verso dessa mesma música: "How wonderful life is while you're in the world".

Dar um presente não é só dar um presente: é dar um pouco de si. Muitas vezes, literalmente, pois tem-se a ideia, seleciona-se o que dar, dirige-se ao local onde há, compra-se, embrulha-se para presente. E, finalmente, entrega-se o presente. Entrega-se também como pessoa: entrega um pouco de si no presente, no estender a mão, no abraçar, no compartilhar o sorriso da surpresa.

Ser dor e delícia

Do mais ao menos letrado cidadão, imagino que um imenso número de pessoas conhece o famoso "Ser ou não ser", que Shakespeare coloca na boca de Hamlet, na peça homônima (que, aliás, está em cartaz em São Paulo - vi no sábado passado, e nesta sexta vou de novo). O que já é quase um bordão junta-se à instigante constatação: "eis a questão".

Longe de mim, bem longe, querer fazer qualquer julgamento, lançar o menor juízo de valor a respeito do que   é "ser" hoje. Muitos vão dizer que atualmente "ser" é algo tão incrivelmente superficial que não é mais possível conhecer alguém com alguma profundidade. Outros certamente dirão que "ser" envolve tantas possibilidades, que viver apenas uma delas é, de certo modo, empobrecedor da própria existência.

Aqui no meu canto, quietinho, na solidão da minha casa, no silêncio desta noite que (a despeito da chuva que caiu) parece beirar os 40º de febre, acredito que realmente o importante é ser. Mesmo sabendo que "ser" algo ou "ser" de um jeito não implica necessariamente não poder "ser" outra coisa ou não poder "ser" de outro jeito. Estão aí os conceitos da pós-modernidade (Stewart Hall) para nos ensinar sobre a fluidez das identidades.

O fato é que "somos quem podemos ser" - como cantam os Engenheiros do Hawaii, que citei ontem. Mais: a mim me parece bastante arriscado imaginar que alguém é apenas algo ou apenas de um jeito. Somos múltiplos, exercemos dezenas de papéis, mudamos de posição, de pensamento, de conceito. Mudamos. É certo que não somos (e ponto): nós estamos sendo, estamos nos construindo a cada momento. E "cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é". Ou: de ser o que está sendo.