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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Visão de criança

"O que você não pode, eu não vou te pedir. O que você não quer, eu não vou insistir" são versos da música Piano Bar, dos Engenheiros do Hawaii - cujo compositor (Humberto Gessinger) tem o dom de juntar palavras tal como criança com seus brinquedos. Hoje vivi uma experiência que me lembrou esses versos e me fez pensar o que ainda não havia enxergado neles. É... crianças têm esse poder de nos abrir os olhos.

Havia encerrado o atendimento a duas alunas no meu escritório, concentrado em fazê-las destravar sua escrita e escreverem com consciência, naturalidade e consistência. Foi uma aula bem legal. Mais legal ainda foi quando a mãe de uma delas veio buscar ambas. Ela estava acompanhada de outros três filhos menores: duas meninas e um menininho de seus 4 anos. Todos muito lindos. Mas não mais do que aconteceu.

O menininho tomou a frente de todos e adentrou o escritório em minha direção. Quando me agachei para cumprimentá-lo olhando nos olhos, ele abriu os braços, aproximou-se mais de mim e me abraçou. Não tive dúvida: me levantei com ele no colo, enquanto ele se aninhava em mim. Sua face no meu ombro, nuca no meu pescoço, seus braços me abraçando como quem queria mais do que me cumprimentar.

Crianças têm percepção mais aguçada do que muitos adultos. Aquele menininho, de algum modo, soube e sabe que eu adoro criança; soube e sabe que sempre terei um sorriso pronto para dar a uma criança, uma brincadeira, um carinho a fazer. Como seria bom se a gente, adulto, pudesse ter a clareza de enxergar nos outros aquilo que eles têm para compartilhar, ou, ainda, se agente pudesse insistir naquilo que as pessoas realmente querem. Quisera eu ser como criança para ver o que realmente interessa.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Braille em seda

Um dos poetas portugueses que mais respeito é Fernando Nogueira Pessoa. Sim, ele tinha meu sobrenome. Quer dizer: a ordem é inversa - eu tenho o sobrenome dele. E com muito orgulho. Dentre seus mais de 70 heterônimos (sim, sim, não foram apenas 3 - ele era genial demais) o que mais curto ler é Alberto Caeiro. Adoro o verso "Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo".

É do meu espaço, da postura do meu corpo, da posição dos meus olhos, da qualidade da minha visão... que eu contemplo o que escolho contemplar. Ora me agrada o escuro, sobretudo, quando muito cansado e com as retinas fatigadas ponho-me sobre minha cama, solitário. Ora me agrada a luz, principalmente, quando o dourado do Sol colore de verde as folhas das árvores que o vento balança, ou de diversas cores as casas, os carros, as pessoas e suas roupas. Também gosto da penumbra, ainda mais estando a dois numa conversa  que nunca quero acabar.

Às vezes a luz resplandece por longo tempo; outras vezes, dura pouco. Mas sempre está aí. E o legal é que, com um pouco de sensibilidade, a luz se deita sobre coisas impalpáveis, como a alegria (ou tristeza) de alguém, como a esperança que de vez em quando me veste como se fosse uma roupagem de seda e - como que em braille para meu tato confuso - me faz ler palavras de incentivo: vai, meu! Vai que é possível!

Como vaga-lume, há vezes em que esse feixe de luz brilha intensamente e se apaga subitamente. Contudo, feito vaga-lume também, segue seu voo pela noite escura para, com toda certeza, voltar a bilhar e a me vestir com o manto de seda mais uma vez: vai, meu! É possível! Aqui da minha aldeia vejo da terra o quanto de esperança há no Universo, porque, escreveu o mesmo Fernando Pessoa, no mesmo poema, inclusive: "sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura".

domingo, 28 de outubro de 2012

Eleição... de pensamentos

Hoje, saindo da sala onde votei, presenciei um diálogo muito interessante entre um garotinho de seus 3 ou 4 anos e seu pai. Provavelmente encantado com a beleza do colégio, o menininho pediu ao pai para conhecer também o andar de cima. O pai respondeu ao garoto que não poderiam ir lá porque a passagem estava fechada por conta da eleição. Depois de procurar e não achar o significado da palavra "eleição" em sua cabecinha a mil por hora, logo perguntou: "que que é eleição?". O pai demorou para responder. Não fiquei para presenciar a resposta, até porque notei que o adulto estava se embananando diante daquela pergunta tão direta.

Pois é... esse ato de escolher uma pessoa que vai ocupar um cargo que lhe dá o direito e o dever de cuidar das coisas que dizem respeito ao bem comum de uma cidade (que é o caso de São Paulo hoje) é revestido de uma responsabilidade ímpar, que muitos ainda o praticam apenas por obrigação. Ainda num domingão como esse, dourado de tanto sol, quente de tanto sol, malemolente de tanto sol... era preferível a gente se mandar para uma praia, se encher de protetor solar e curtir o areal e a água e o vento.

Fico pensando sobre o que pensar dos meus pensamentos quando penso o que penso. Tenho certeza de que  muita gente não tem poder de escolha sobre o que pensa. Muita gente não tem o poder de observar o contexto do pensamento, seu plano de governo da nossa cabeça e do nosso coração. Muitos não distinguem os pensamentos bons dos maus. Muitos não percebem as palavras enganadoras que o candidato (opa! o candidato não!)... que o pensamento lança e simplesmente embarcam no seu discurso para uma praia onde se afogarão.

Acho que é assim mesmo. Da mesma forma que elegemos candidatos para governar a cidade onde moramos, também elegemos os pensamentos que governam o que sentimos, o que queremos e o que fazemos. É isso... uma questão de escolha.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Micropoema gramatical

Sempre vírgula
Antes de pois

O movimento e a parada

"Não pense que a cabeça aguenta se você parar", é um dos versos de Raul Seixas. Um artista que admiro muito por tudo que fez pela música brasileira, pelo impulso que deu ao rock nacional, pelas letras sempre marcantes, ora debochadas, ora de pesadas críticas sociais, ora de profundas imersões pessoais. Tudo isso, justifica mesmo que sempre se ouça o insistente coro "Toca Raul!!!"

Esse verso é da música "Tente outra vez", a qual, sempre que ouço, nunca ouço só uma dezena de vezes. Com toda certeza, vou voltar a citar trechos dela aqui. Hoje quero pensar um pouco sobre a cabeça que para quando a pessoa para. Assim como o personagem do conto "Uma vela para Dario", de Dalton Trevisan, muitas vezes as pessoas param uma caminhada apressada que empreendiam na busca de um objetivo. Como resultado, todas as coisas vão-lhes sendo subtraídas. Inclusive, a vida.

Às vezes a parada é para tomar um fôlego, repensar estratégias, verificar os resultados obtidos e, depois, retomar a trajetória. Outras vezes, entretanto, a parada se dá porque o corpo se exauriu, as forças se foram, o sentido das coisas se perdeu, a razão de viver estendeu a placa de "Pare". Daí o sujeito realmente para e tudo que enxerga da avenida que seguia se transforma apenas na imagem de um beco sem saída.

É nesta hora que olhar para cima, encontrar a luz do sol e descobrir seu movimento de leste a oeste, vai reposicionar o caminhante. Em tempos modernos, é nesta hora é preciso acionar um GPS e seguir a direção que ele indicar rumo ao bem-estar, à alegria de viver. Ou, na ausência do sol e na inexistência de um GPS, esta é a hora de ouvir internamente os versos de Raul: "Beba, pois a água viva ainda está na fonte. Você tem dois pés para cruzar a ponte. Nada acabou".


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

O que se leva e se deixa

"... o que se leva dessa vida, coração, é o amor que a gente tem pra dar". Quem não conhece esse verso cantado por Elba Ramalho, com sua inconfundível voz que ecoa sob aquela cabeleira ímpar e com aquele rosto típico e guardador de um sorriso inesquecível.

Tantas preocupações agarram as pessoas nesta vida, que elas mergulham numa série insana de atividades na busca de realizar o sonho do ter e do fazer terem. Primeiro, de elas mesmas terem algo: seu carro, sua casa, sua capacidade de consumir diariamente, de viajar regularmente - entre tanta coisa. Segundo, de elas poderem deixar suas conquistas para seus herdeiros - como um sinal de vida bem-sucedida, como um símbolo de pessoa vitoriosa, de trajetória gloriosa. Na tentativa de serem bem lembradas quando se forem.

Desde que não seja algo que leve as pessoas a comportamentos patológicos, a práticas de ilegalidades, à promoção de si em detrimento de alguém... e também desde que essa busca seja vivida de forma equilibrada, sem desmerecer a si mesmo, ao próximo e ao meio em que se vive, não parece haver muita coisa errada nesse estilo de vida.  

Em tudo é preciso agir com o amor que embebe o nosso espírito e que se transforma em sorrisos e abraços, em dedicação e reconhecimento, em atitudes de solidariedade e respeito, em promoção de atitudes edificantes... em demonstrações de amor à vida. Porque, na verdade, além de ser aquilo que levamos dessa vida, o amor que temos para dar é também aquilo que nós deixamos nesta vida.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

No limite

"Só sinto no ar o momento em que o copo está cheio e que já não dá mais pra engolir", canta o agora retratado em filme, filho de Luiz Gonzaga, o Gonzaguinha - que já foi citado aqui por mim algumas vezes - em um verso fantástico na música Grito de Alerta.  

Não são poucas as vezes em que as pessoas se veem como o último fio de uma corda prestes a estourar. Ou como o último fiapo de um tecido esgarçado prestes a rasgar. Nem são menos as vezes em que tantas outras pessoas, já passadas desse limite, isto é, como cordas já rompidas, como tecidos já rasgados, veem-se na obrigação de ainda dar sustentação a duas margens que não se conversam mais.

São pessoas que responderiam bem à pergunta do Djavan: "Sabe lá o que é não ter e ter que ter pra dar?". É gente que já tomou tanta pancada e que ainda tem de oferecer outra face menos machucada do corpo para apanhar. São amigos que trabalham tanto e tão intensamente que recusam quase todos os convites para uma diversão simples. Um grupo de indivíduos que não valorizam a individualidade, mas que, em nome do coletivo e de agradar a todos, acatam todo tipo de proposta que lhes surge.

É dessa forma que vão enchendo o copo com mais e mais de um líquido cujo excesso vai corroer sua vida, um líquido que se comprometeram beber, um líquido dado por outros que se aproveitam da fragilidade ou da imensa disponibilidade dessas pessoas para receber favores ou seja lá o que for. Diante disso, imagino que tais pessoas multiatarefadas sussurrem os versos de Chico Buarque: "Deixe em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa, que qualquer desatenção - faça, não - pode ser a gota d'água".

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Nós na cena

"Sempre diz que é do tipo cara valente. Mas, veja só: esse humor é coisa de um rapaz que, sem ter proteção, foi se esconder atrás da cara de vilão", canta a filha mais filha de Elis Regina. Meu Deus, que voz igual! Ali não dá pra disfarçar. É filha de peixe (como diria o ditado). É o que é. E ponto.

Não foram poucos os que afirmaram que esta nossa vida é uma grande representação. Shakespeare, por exemplo, acreditava que todos somos uma grande companhia de atores, e que o mundo é o nosso palco. As situações do cotidiano que enfrentamos são as cenas nas quais somos protagonistas. Outros tantos já reatualizaram tal afirmação.

E é fato para mim também. Acho mesmo que representamos ao assumirmos, no mesmo dia, tantos papéis sociais: ora filho, ora irmão, ora pai; ora aluno, ora professor; ora empregado, ora chefe; ora amante, ora amado... e assim por diante. Em todas as situações, temos que representar e representar bem, se quisermos continuar dignos de integrar determinada cena. A cada um de nós, não basta ser: é preciso parecermos ser.

Até aí, normal. É parte do jogo. Ou da peça em cartaz. A meu ver, ruim é quando a representação é calculada para enganar, por exemplo, para fraudar, para se beneficiar de algo em detrimento de outro ator. Ruim também, em certa medida, é representar contra nós mesmos. Fingirmos ser o que não somos. As pessoas mais próximas e mais sensíveis notam. "Não faz assim, rapaz. Não bota esse cartaz, que a gente não cai, não".

sábado, 20 de outubro de 2012

Mais do mesmo

"Year after year, running over the same old ground, what have we found? The same old fears", são versos maravilhosos de uma canção magnífica do Pink Floyd: Wish You Were Here. Ótima música para tocar, para cantar e para ouvir. Mas quando se para para pensar a letra...

Embora seja possível falar de muita coisa a partir desta música (e eu certamente a retomarei outras vezes), hoje quero me ater aos versos que citei acima. Quantas vezes uma pessoa se vê por anos e anos pisando o mesmo velho chão que as leva aos mesmos velhos medos? Que estranha tendência as impulsiona a tomar o mesmo caminho que vai dar nos mesmos lugares, mesmo sabendo que vão proporcionar as mesmas coisas que as afetam negativamente?

Psicólogos dirão que se trata de uma tendência autodestrutiva compulsória. Sociólogos falarão de padrões de comportamento repetitivo. Religiosos falarão da necessidade de passar por determinada experiência inúmeras vezes até aprender. Filósofos falarão do aspecto cíclico da vida. Leigos dirão: que idiotice! Por que optar pelo que se sabe que não vai dar certo, pelo que não vai acabar bem?

7 bilhões de pessoas podem dizer o que tiverem pra dizer. Mas o que dirão as pessoas que passam frequentemente por essa situação? É a voz delas que precisa ser proferida no diálogo com seus medos para que seus pés as conduzam por caminhos que lhes tragam melhores paisagens.

O papel da ilusão

"A green plastic watering can for a fake chinese rubber plant in the fake plastic earth", canta o Radiohead. Essa música, chamada Fake Plastic Trees, fala das ilusões que fazem parte da vida de muita gente. As ilusões são parte integrante da vida.

Lembro bem de uma aula que dava para os meus alunos de 9º, a partir de um conto que retratava o cotidiano de uma senhorinha cega e analfabeta, que, mesmo sabendo da verdade, insistia em acreditar que seu filho não havia morrido na guerra. E que, por isso mesmo, sempre pedia a um amigo que lesse uma carta do filho para ela. Era a única carta. Mas para não feri-la (mais), o rapaz que recebia as supostas cartas, lia como se fosse sempre uma carta nova. Ela sabia que não era. Mas ela queria se iludir. O rapaz colaborava.

E eu dizia para os alunos que um pouco de ilusão às vezes é necessário para manter a vida. Naturalmente uma ilusão para a vida inteira não é a coisa mais saudável para se cultivar, mas no caso da personagem que descrevi acima (e talvez de muita gente) algumas ilusões são perenes. Como já disse aqui, citando Cazuza, "pequenas porções de ilusão" podem ser interessantes e saudáveis.

Etimologicamente, a palavra ilusão está ligada a jogo, a tudo que é lúdico, inclusive ao ato de enganar para vencer. Daí a prática do ilusionismo, das coisas que parecem sumir na nossa frente. A palavra também está ligada ao que é efêmero. E nesse sentido o papel da ilusão é dar um significado melhor para a vida ou para certo momento dela, de modo que, como canta Oswaldo Montenegro, ela se torne "ao menos, suportável".

Micropoema 2: dormir

Dormir
Sem dó em mim
Sem dó sem mi
Sem dor sem mim
É menos que dormir

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

De olhos bem abertos

"Tem gente que machuca os outros; tem gente que não sabe amar. Mas eu sei que um dia a gente aprende", canta Renato Russo, numa canção antiga que gravou primeiro com Flavio Venturini. E, como grande parte daquilo que escreveu, ele tem razão: tem, mesmo, gente que tem prazer em prejudicar os outros.

Alguns fazem isso conscientemente. Planejam, calculam e executam planos cujo único objetivo é obter prazer com o sofrimento alheio. E não precisa ser grande prejuízo, não. Pequenas situações em que o outro se vê diminuído, atrapalhado. Sutis difamações que despertam maledicências à pessoa que se quer ver diminuída. Falas indiretas, com ambiguidades capazes de minar aos poucos a imagem da vítima.

Outros têm inclinação para isso e não sabem. Suas palavras, suas ações acabam desencadeando energias suficientes para prejudicar alguém. Se, por um lado, isso lhes dá certa inocência perante os demais; por outro lado, esmaga-lhe a possibilidade de enxergar o que ele mesmo faz, ainda que inconscientemente.

O fato é que cada um de nós precisa saber que esse tipo de gente orbita à nossa volta. Do mesmo modo que igualmente nos circundam as pessoas de bem. Ainda que nossos olhos nem sempre vejam quem são essas pessoas, o coração sente. Há alguma forma de energia que vibra positiva ou negativamente. Para aqueles que despertam antipatias e, portanto, energias negativas, é preciso estarmos fechados e não consentirmos que tenham alguma forma de poder sobre nós.

A direção dos ventos

Os Engenheiros do Havaí, cujas letras e melodia eu admiro demais, cantam que "os ventos às vezes erram a direção". Junta-se a esse verso o simples, mas bombástico, verso de Torquato Neto: "a madrugada mudou" - cantado pelo Titãs.

Tenho o privilégio de contar com a confiança de muita gente, por exemplo, de meus alunos. Há cerca de um mês, uma das minhas alunas da turma de Latim pediu para falar comigo, porque estava bastante incomodada diante de uma situação em que tinha de tomar uma decisão, fazer uma escolha entre parar faculdade de Letras para fazer, a contragosto de seus pais, faculdade de Música. Analisei com ela algumas possibilidades de transferência ou de aceleração do curso, aproveitamento de créditos etc. Tudo parecia inviável.

Seus pais já não a apoiavam no curso que fazia; apoiavam muitíssimo menos no que pretendia fazer. O sonho dela é ser musicista. Ela já toca violino em concertos no Estado e fora dele. Seu coração estava muito triste porque não tinha a menor condição de financiar seus estudos; não tinha como se bancar sozinha num curso superior de música. Se, por um lado, não queria desagradar, ainda mais, os pais; por outro, não queria viver deprimida, distanciando-se cada vez de seu sonho.

Hoje, no entanto, no início da aula, ela pediu para falar comigo depois que a aula terminasse. Meu coração já se preparava para ouvir as lamentações daquela aluna. Entretanto, o sorriso tímido com que ela se dirigiu a mim, começaram a anunciar que de suas palavras viriam bons ventos. E, de fato, ficou provado que "a madrugada mudou" e que os ventos haviam errado a direção. Seus pais haviam resolvido apoiar o sonho da moça. Quando fez o teste de ingresso na escola, os avaliadores notaram seu talento. Resultado: concederam 50% de desconto para ela. Ela não sabe como, nem por que. Só sabe que algo mudou. E para melhor.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Bem feito

Acho que já citei aqui o verso de Arnaldo Antunes, segundo o qual "Tanto faz o que você fala, se tanto faz o que você faz". Para mim, é difícil dar a algo o status de "tanto faz". Muito menos a alguém. Isso me faz lembrar constantemente de uma frase que me foi dita pelo diretor de uma empresa em que trabalhei como responsável pelo centro de processamento de dados.

Certo dia, em meio a uma conversa no meio da tarde - não me lembro bem do contexto - esta frase veio à tona no discurso do Sr. Oscar: "Se alguma coisa merece ser feita, ela merece ser bem feita". Não sabe ele, mas aquela frase saltou do seu discurso e ficou permanentemente incrustada na minha consciência. É, em grande medida, essa mesma frase que me faz agir como ajo, pensar como penso.

Viver de acordo com esse valor é uma oportunidade frequente de dar de mim o máximo que posso em cada situação em que me encontro. Embora (isto não vou negar nunca) eu trabalhe bastante e em diversos lugares, afirmo com tranquilidade que tudo o que faço em cada um desses lugares faço-o com inteireza, da melhor forma que estiver ao meu alcance.

Se, por um lado, essa postura organiza meu modo de viver, por outro, ela tenta me enganar e me fazer acreditar que os demais naturalmente se guiem pela mesma postura. No entanto, não é bem assim que acontece. Quanto descaso vemos por aí (veja-se na política pública, por exemplo). Nisso está um grande exercício de paciência, de crença de motivação no sentido de que, desde algo simples como uma conversa, até algo complexo, como a condução das nossas vidas, seja feito como deve ser: bem feito.  

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

O professor e o senso comum

"Non scholae sed vitae discimus", diriam os romanos há dezenas de séculos distantes. Sem a menor sombra de dúvida, uma das verdades mais límpidas a se divulgar: não é para a escola que aprendemos, mas para a vida. 

Sem deixar de parabenizar a todos os meus companheiros de profissão a alegria e a satisfação que todos merecem, gostaria de, neste dia dos professores, sair do senso comum e afirmar que quanto mais estivermos absortos pela ideia de que é para a vida que ensinamos, mais eficientes professores seremos; mais felizes, mais realizados.

Embebidos dessa verdade, muito provavelmente selecionaremos melhor nossos conteúdos a ensinar, prepararemos com mais alegria as nossas aulas, avaliaremos com maior clareza nossos alunos prestes a exercer em plenitude sua cidadania.

É preciso sair do senso comum: o professor forma pessoas, não só alunos. Constrói sabedoria, não informações. A maior matéria que ele leciona é a arte de viver. É isso que ele professa. 

Obrigado não

"Ninguém lhe diz ao menos 'obrigado'" é um dos versos da música 'Índios', da Legião Urbana, banda que curti por muitos anos e que tem a minha admiração até hoje. Certa vez, um dos colegas de trabalho, com quem já dividi algumas bancas de mestrado e doutorado, num almoço em Curitiba, finalizou uma de suas falas assim: "gratidão nunca é demais".

Certamente ele não sabe que aquela frase entrou para o rol daquelas que dão suporte para um dos valores que sustento e procuro seguir: gratidão. Julgo que seja de grande importância ter um coração grato, a ponto de reconhecer cada gesto, cada palavra, cada esforço, cada coisa ou acontecimento que nos faz bem. Um 'obrigado' sincero e dito com a alma produz simpatia, emoções e sensações positivas no outro e dá quem quer que seja a sensação de recompensa e a devida motivação para continuar praticando o bem.

Já o 'obrigado' dito da boca para fora, embora não seja pior que a indiferença, é algo que cai vitimado pela apatia, como se não tivesse havido a devida gratidão e, portanto, como se fosse falsa a gratidão expressa dessa forma. Soa como um mero cumprimento de obrigatoriedade, uma simples obediência a um protocolo social. Dizer sinceramente um 'obrigado' é sempre bom, mas fazê-lo obrigado... ah, não. Obrigado não.

Mas ruim, ruim mesmo, é a ingratidão. Se, por um lado, o agradecimento pró-forma revela apatia, por outro, a falta do espírito grato veste de antipatia a imagem do ingrato. Mais que isso: tem o poder de  minar o desejo de cordialidade, de cindir as relações de cordialidade, de romper as boas ações - por mais desinteressadas que sejam. Gratidão sincera nunca é demais.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

A pior falta

"Alma. Deixa eu ver sua alma! A epiderme da alma. Superfície. Alma. Deixa eu tocar sua alma com a superfície da palma da minha mão", canta Zélia Duncan, com seus arranjos ótimos e suas letras reflexivas. Não são poucas as vezes em que nos sentimos surpresos. Vezes em que passamos por experiências, na maioria das vezes, nada traumáticas, nada muito sérias, nada que seja um bicho de sete cabeças.

É assim o sentimento de frustração: a gente chega com corpo e alma para estar diante de algo ou de alguém. Mas surpreendentemente nem algo nem alguém está lá onde a gente esperava que estivesse. Daí vem o sentimento de solidão do corpo, porque ficou sem alma. Aliás, isso é exatamente o que significa a palavra "desanimado": que está sem alma.

Provavelmente seja o sentimento que invade alguém que teve seu carro roubado, ou que experimentou a falta em um encontro, ou que viu ruir a certeza de uma vitória, ou que teve uma avaliação muito inferior à que esperava, ou que experimentou o não cumprimento de uma palavra, enfim: alguém que recebeu o vazio ao invés da plenitude. Nesta hora, vale o refrão: "levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima".

É preciso esperar baixar a poeira da frustração, o suor das mãos, as batidas aceleradas do coração. Engolir eventuais lágrimas de tristeza, rechaçar a raiva, deixar a vontade de vingança presa. Reorganizar tudo, tentar entender o que não estiver sob as asas do imponderável, reerguer a cabeça e fazer o que tem de ser feito. Isso porque, talvez, a pior falta seja a falta de alma.

O sonho de Ismália

É muito bom ter amigos. É muito bom ter sonhos. Melhor ainda é ter amigos que nos ajudem a realizar nossos sonhos. Já o fato de ter amigos que nos digam que determinados sonhos são em certos contextos são mera quimera, mera fantasia, ah... isso "não tem preço".

Não são poucas as vezes em que somos abraçados pelos oneiros, Ícelo e Fântaso. De acordo com os relatos da Mitologia Grega, ambos são filhos de Hipnos e normalmente se personificam em forma de sonhos para, desta maneira, influenciar os destinos de todos nós, humanos, mortais, limitados. Às vezes, um leva para um lado; outro leva para outro lado.

Foi assim com o sonho de Ismália, personagem do poema de Alphonsus de Guimaraens, poeta romântico mineiro, que relata em simples e breves versos a trajetória de alguém que se põe na rota da realização de um sonho duplo. Do alto de uma torre, Ismália deseja não só a lua que ela vê brilhar no céu, mas também a lua que ela vê refletir nas águas do mar. Em seu salto, na tentativa de conquistar as duas luas, embora abra as asas que ela acreditava ter, não consegue uma nem consegue a outra lua. Morre.

Os amigos estão aí para nos mostrar que os sonhos são possíveis. Eles nos incentivam para conquistar nossas pretensões oníricas. Se contarmos com amigos para nos ajudar a realizar sonhos diferentes, eles certamente nos ajudarão. No entanto, se não tivermos clareza daquilo que queremos, e desejarmos coisas ao mesmo tempo tão iguais e tão díspares - como as luas de Ismália - a ajuda mais do que sincera dos amigos pode ser apenas a torre em que estaremos subindo.

Abaixo, o poema Ismália

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Os jovens e sua mente

"Quero saber bem mais que os meus vinte e poucos anos", cantava Guilherme Arantes há décadas com sua voz de pouca tonicidade. Entre suas músicas, há preciosidades de letra e de melodia. Certamente citarei aqui várias vezes esse compositor. Por ora, interessa-me este verso: "Quero saber bem mais que os meus vinte e poucos anos". Isso para dizer que, em meu caso, o mesmo verso deveria ser cantado assim: Quero saber bem mais que os meus vinte e vinte e poucos anos. Pois é: no alto dos meus vinte e vinte poucos, ainda não conheço direito minha mente.

Tenho o privilégio de ter duas filhas e muitos alunos cuja idade é três vezes menor que a minha. E a mente dessa moçada? Quem é que entende? Acho que nem eles próprios. Não só porque são jovens, mas porque  - graças a Deus e ao universo interminável de experiência que vivenciamos - a nossa mente não para de se transformar nunca, não para de se enriquecer nunca. Ela, na verdade, não para nunca.

Esta geração que ora se apresenta para nós, em sua maioria, está conectada quase o dia todo; gasta mais tempo na internet do que na televisão, nos livros ou nas atividades escolares; lida de um modo diferente com a hierarquia; tem rala noção de fronteiras de tempo e espaço (físico ou psicológico); não consegue se concentrar por muito tempo; não tem paciência para ler textos que extrapolem uma página; não consegue manter o foco em uma coisa só; não se dedica a uma tarefa só nem a uma pessoa só; não estabelece relações afetivas com perspectiva de longa data... 

Esta geração que está diante de nossos olhos é diferente da nossa. Vale aqui uma metáfora de Nicholas Carr: diante do mar, a nossa geração prefere se ater a um lugar, a mergulhar e absorver daquele curto espaço o máximo que ele pode nos dar. Já a geração atual, diante do mesmo mar, prefere subir num jet-ski e ter rápidos e esparsos contatos com o mar, em alta velocidade. É assim que esta geração se porta diante dos estudos, dos pensamentos, das relações, da vida. Jamais me atreveria a dizer que é uma geração melhor ou pior do que a nossa. É apenas diferente: sua mente tem um funcionamento que ainda nos causa estranheza. Quem sabe quando os jovens atuais tiverem seus vinte vinte e poucos anos possamos ter uma melhor compreensão...

terça-feira, 9 de outubro de 2012

O nosso ideal

"São tantas coisinhas miúdas roendo, comendo, arrasando aos poucos o nosso ideal", canta Gonzaguinha, excelente músico que cantou as relações do homem consigo mesmo, com o outro e com a vida. Assim como o pai, brilhante músico. Assim como o pai, morto precocemente. Pensando no contrário do que rói, come e arrasa nossos ideais, é preciso afirmar que há coisinhas miúdas que fortalecem nosso ideal. Vou me referir a três delas aqui.

1 - O prédio onde minhas filhas moram tem um cachorro, sem raça definida, querido por todos, preto, bonito. E velho. Muito velho. O olhar sem cor e incapaz de distinguir quase tudo. Audição comprometida. Pernas arcadas. À espera do fim. Enquanto esperava minhas filhas descerem para eu levá-las à escola, uma cena me chamou a atenção. Um rapaz, desses com todo tipão jovem e desencanado, de quem eu no meu preconceito jamais esperaria tal atitude, parou sua caminhada apressada diante do cachorro. E ficou ali por por cerca de um minuto acariciando sua cabeça com as duas mãos. O porteiro, veio lhe trazer uma correspondência. Ele estendeu uma das mãos, pegou a correspondência, prendeu-a entre os dentes e voltou a mão para acariciar o cão com as duas. Isso não deve ter levado sequer um minuto. Mas está gravado pela eternidade em minha memória.

2 - Ontem fui ao Shopping almoçar. Depois de pagar o tíquete do estacionamento, enquanto me dirigia à  escada rolante, avistei uma família grande, integrada também por uma menininha ainda no carrinho de bebê. Ostentada com orgulho por todos que acompanhavam, ela chamou minha atenção e, como não resisto a crianças, parei minha trajetória ao pé da escada rolante para fazer graça para aquela menininha: toquei-lhe o queixo, o pescoço, o bracinho e sua mão; fiz sons que a fizeram rir. Todos rimos. Quando me levantei para sair, ela não abria a mão para largar a minha. Brinquei mais um pouco e saí. Quando cheguei ao carro, não achava meu tíquete de jeito nenhum. Voltei para o caixa, e lá estava ele. Eu o havia deixado cair enquanto brincava. Aquela família o havia devolvido ao caixa.

Hoje, minhas filhas entraram no carro com um presente em mãos. Sem mais, sem menos, o estenderam para mim. Era claramente um CD, num pacote da Fnac em que elas haviam escrito "Parabéns, pai". Quando o abri, para minha surpresa, ali estava o disco que há muito tempo eu havia elogiado para elas. Disse também que pretendia tê-lo e que poderíamos comprá-lo quando fôssemos à Cultura. O tempo passou. Antes, porém, de irmos à livraria, depois desse tempo todo, me deram o CD como presente. Claro que me emocionei. Afinal, esses e tantos outros são gestos de vida que deixam mais forte o nosso ideal de vida.

domingo, 7 de outubro de 2012

Eleição para ver, ouvir e aprender

"Quando tudo está perdido, sempre existe um caminho", cantava Renato Russo no último disco seu gravado em vida. Apesar da tristeza que perpassa cada verso de cada canção, o espírito lutador dele faz ecoar sua voz entre as terras áridas do sofrimento, como vegetações que rasgam os mais duros solos para se fazerem vistas e para assegurarem seu direito à vida.

O resultado das eleições em São Paulo oferece uma lição interessante, que só verá quem tiver olhos para tanto. A cidade teve ao longo da campanha um candidato muito na frente nas intenções de voto, segundo todas as pesquisas. No entanto, literalmente nos últimos dias, ele foi ultrapassado não só pelo segundo colocado, mas também pelo terceiro. Ele sequer conquistou o direito de disputar o segundo turno.

Verdades escondidas que só trafegavam pelos esgotos da política romperam os encanamentos da cidade e se fizeram ver por um número tão grande de pessoas, que sua derrota fez-se iminente. Assim como as vegetações que citei acima vêm à tona como forma de vida, podridões também dão o "ar da desgraça" e fazem seu estrago. Não se pode não dar ouvidos a isso. Só ouvirá quem tiver ouvidos para tanto.

Adoraria fechar este texto com chavões como "a vitória só é certa quando o jogo termina". Ou ainda como "ninguém engana muitos por muito tempo". Mas não o farei. Vou dizer apenas que, em todos os seus âmbitos, a vida é surpreendente. A roda da fortuna (Carmina Burana) gira para todos. E sempre encontra um caminho.

Titãs: 30 anos

Assisti com um gosto imenso ao show de comemoração dos 30 anos de carreira dos Titãs. Os mais novos talvez conheçam pouco desta banda paulista que revolucionou o rock nacional. Sucessos inesquecíveis vieram ao palco e fizeram o público mergulhar num momento de intenso prazer. Músicas ótimas, letras marcantes e um ritmo alucinante que não deixa ninguém alheio.

Como não poderia deixar de ser, o show contou com a presença dos músicos que saíram da banda, há 3, 10 e 15 anos: o baterista Charles Gavin, o baixista Nando Reis e o vocalista Arnaldo Antunes. Legal ver que a saída deles não impediu que pudessem se reencontrar para promover um show tão impressionantemente bom. No refrão de Homem Primata: eu trabalhava, eu não sabia que o homem criava e também destruía.

Pois é, tem coisas que no curso de sua existência sofrem cisões, separações, distanciamentos, como se passassem a viver numa "sonífera ilha" e, quando possível ou necessário, como numa ponte que parte da ilha em direção ao continente, ou deste para aquela, ocorre o religamento, o novo contato - sem que necessariamente a ilha se agregue ao continente ou este àquela.

Às vezes, porém, o fosso é muito grande. Ou a fenda é muito extensa. Ou a erosão é incomensurável. Às vezes a fissura no osso é muito grande e beira à fratura. Outras vezes o esgarçamento do músculo traz muita dor a cada movimento de expansão ou de contração, de ida ou de vinda. Nesses termos, se não há o que comemorar, como tiveram os Titãs, que cada margem se mantenha onde está - porque "não não dá pra imaginar o quanto é cedo ou tarde demais pra dizer adeus, pra dizer jamais".

sábado, 6 de outubro de 2012

Tendências 4: entre o sublime e o grotesco

"Quem ama o feio, bonito lhe parece" é uma frase que costumamos ouvir desde pequenos, sobretudo em situações em que alguém faz uma escolha por algo que, para a maioria, seria o mais improvável. Seja por razões estéticas, econômicas, socioculturais - ou quaisquer outras -, a tendência para o grotesco em detrimento do sublime é algo espantoso.

Quem de nós já não presenciou aquela fila interminável no trânsito; um congestionamento completamente desnecessário justamente em razão de alguns fazerem questão de parar para olhar detidamente um acidente ou incidente de trânsito? Qual de nós não sabe que é bem maior a audiência dos programas televisivos que procuram registrar o chamado "mundo cão", em comparação com um programa essencialmente educativo?

Isso só pra ficar em dois exemplos e para não entrar em eventos mais grotescos, que envolvem locadoras, acessos a sites, músicas mais ouvidas, temas preferidos etc. Não, não vou entrar nessa, assim como não vou entrar na discussão sobre a antiga orientação de que "gosto não se discute". Também não quero apresentar aqui nenhuma faceta preconceituosa, embora nossas preferências culturais sejam sentidas nas palavras.

O fato é que a vida da gente o resultado de nossas escolhas. Nossa boca vai falar daquilo que estiver preenchido o nosso coração. Nossos olhos verão aquilo que domina os impulsos elétricos que comandam as sinapses no cérebro. Nosso espírito se tornará mais ou menos sensível às coisas essenciais da vida. Nossa prática refletirá e, em maior ou menor escala, reproduzirá nossas escolhas. Queira Deus, saibamos escolher entre o sublime e o grotesco.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Tendências 3: a do outro é melhor

"Eu quero sempre mais...", cantam Nazzi e Pitty. Embora estejam falando sobre querer mais do outro, vale aqui uma reflexão. São muitos os ditados nos quais alguém se apoia para demonstrar alguma insatisfação, ou, pelo menos, para expressar um grau inferior de satisfação em relação a algo ou a alguém que seja de outro. Dizer que "a grama do jardim ou outro é mais verde", por exemplo, é um modo de fazer isso.

Talvez esse seja o movimento inicial que faz nascer a inveja e também as atitudes mais inexplicáveis que leva as pessoas a quererem igualar ou suplantar alguém em algo. É mais uma tendência dessas que caracterizam o mundo moderno, no qual a ideia de ser vai se tornando cada vez menos importante do que a de ter.

Não basta ter um carro: é preciso ter O carro. Não basta ter uma casa: tem de ser A casa (ou o apartamento, claro). Não basta fazer uma viagem: tem de ser AQUELA viagem. Não basta, não basta, não basta. A lista não acaba. Basta! Isso é fortalecer a fome insaciável do homem, que sempre quer mais.

É preciso que queiramos mais de nós mesmos. Que superemos os nossos próprios limites. Que estejamos em competição conosco mesmos Não estou propondo o conformismo, a estagnação, a falta de ambição ou de parâmetros. Nada disso. É preciso nos contentar com as coisas que temos, porque as temos. E não porque temos igual ou melhor do que as do outro.

Tendências 2: tristeza

Pouca gente conhece o diálogo com a tristeza, que se ouve na música BOM DIA, TRISTEZA, de Adoniran Barbosa.  Segue:  "Bom dia, tristeza. Que tarde, tristeza! Você veio hoje, me ver. Já estava ficando até meio triste de estar tanto tempo longe de você. Se chegue, tristeza, se sente comigo aqui nessa mesa de bar. Beba do meu copo, me dê do seu ombro, que é para eu chorar. Chorar de tristeza. Tristeza de amar".

Essa música me faz pensar na tendência que muita gente tem para a tristeza. Uma inclinação que faz as pessoas preferirem estar tristes a estar alegres. Não me refiro aqui, necessariamente, a pessoas que procuram  a tristeza, mas àquelas que, a vivenciarem uma situação potencialmente entristecedoras, cedem às muitas possibilidades de saírem daquele estado moribundo de letargia.

Em um dos momentos mais tristes da minha vida, aprendi que a tristeza está bastante ligada às coisas que colocamos diante de nossos olhos, coisas para as quais dirigimos nossa atenção. Elas estão atrás de janelas que abrimos para contemplar. Se optarmos por abrir aquelas que escondem os fatos que nos puxam para baixo, que nos enterram e que nos limitam a capacidade de enxergar além, essa será a visão que teremos. Uma questão de opção, pois se deixarmos fechada esta janela das coisas ruins, sem desconhecer que essas coisas estão efetivamente ali, e abrirmos a janela das coisas que nos elevam, que nos dão esperança, que nos fazem rir, a possibilidade de flertarmos com a alegria é muito maior.

Diante de nossos olhos, ao alcance de nossas mãos estão os fatos, os pensamentos, as lembranças, as pessoas, os sentimentos que nos farão bem e os que nos farão mal. Os que nos inclinam para a alegria; os que nos inclinam para a tristeza. Trata-se mesmo de uma questão de querer dar bom dia: à tristeza ou à alegria. Bom dia.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Tendências 1

Um dos principais seguidores de Cristo, àquela época, recém-convertido ao Cristianismo, Paulo de Tarso (o posterior apóstolo Paulo, que dá nome à nossa cidade, ao nosso Estado) passou de perseguidor dos cristãos a um dos mais dedicados cristãos. Esse inteligente senhor, grego sabedor das coisas, registrou um pensamento seu, segundo o qual o bem que ele queria fazer, muitas vezes ele não conseguia; mas o mal que ele não queria praticar, ah... esse - vez por outra - ele se via fazendo.

Essa confissão de um homem tão grande me faz pensar na tendência que o humano tem para o mal. Não sei bem se é por causa do instinto de bicho que todos temos e que muitas vezes se contrasta com as exigências da (dita) civilização que nos caracteriza. Não sei também se é resultado da constante ação do superego sobre o id que, sufocado e recalcado, culmina naquilo que deixamos vir à tona socialmente, e que chamamos de ego - palavra latina que gerou o nosso famoso "eu".

"Sei não; só sei que é assim", como diriam João Grilo e Chicó na peça "Auto da Compadecida", de Ariano Suassuna. É assim, e me parece não ser coisa recente. O humano sempre pareceu tender para a maldade. O registro bíblico o diz: Eva diante da serpente; Adão diante do fruto do conhecimento do bem e do mal; Caim diante da bondade do irmão Abel (aniquilado por aquele)... multiplicar-se-iam os exemplos da gênese do homem até ontem. Até hoje.

Talvez, convencidos de que o padrão socialmente imposto seja o melhor para o convívio geral, restasse-nos apenas o recurso à consciência para observar nossos padrões de comportamento repetitivo, observar nossos instintos que gritam seu direito à vida e insistem em vir à tona... enfim, observar-nos no nosso íntimo para antever a inclinação, a tendência que nos impele para um lado e, conscientemente, dirigir-nos para o outro.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Viver: afinar um instrumento

Tem gente que tem o chamado ouvido absoluto: distingue perfeitamente os tons, os sons. E mais: consegue reproduzi-los afinadamente com extrema naturalidade, como se houvesse entre si e o som uma perfeita harmonia que propicia a ambos uma vibração equivalente, uníssona e melódica.

Sinceramente: eis algo que eu gostaria muito de ter. Não é segredo para ninguém o fato de que uma das minhas maiores frustrações é não saber cantar. Neste ano, passei a dedicar algumas horas da minha vida para entender um pouco de música. Assim, passei a estudar teoria musical, contrabaixo e canto. Sei que cantar afinadamente é resultado de muito esforço, de muito exercício para o diafragma e para as cordas vocais. Acho algo simplesmente angelical, divino, um dom, uma graça, uma dádiva saber cantar.

Assim é com a vida também. Como canta Leila Pinheiro, na música que citei aqui há alguns dias: "viver é afinar um instrumento, de dentro pra fora; de fora pra dentro; a toda hora, a todo momento". Tenho muito que aprender, tenho muitas notas para acertar, muitos acordes para soar. Não é incomum eu errar sempre nos mesmos pontos e da mesma maneira em diversos momentos da música da minha  vida.

"No peito dos desafinados também bate um coração", cantava João Gilberto. Entretanto, com ou sem coração, é fato que eu preciso fazer mais exercícios, para tocar melhor, para cantar melhor, para viver melhor.