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segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Tudo muda o tempo todo

"Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia" é um verso de Lulu Santos, na música Como uma Onda. Nada há de novo em suas palavras, até porque Heráclito, um filósofo pré-socrático, já havia cravado esta constatação: "Não podemos nunca entrar no mesmo rio, pois, como as águas, nós mesmos já somos outros". E será este, justamente, meu objetivo para 2013: ser diferente, ser melhor - uma pessoa melhor.

"Tudo muda o tempo todo no mundo" - continua Lulu Santos. E eu vou me valer da ambiguidade desse verso para afirmar algo. Ao mesmo tempo que ele diz que as coisas mudam constantemente, ele também diz que tudo muda o tempo todo, isto é, as coisas podem mudar o tempo. Mais: podem mudar o tempo todo. Quer dizer: posso alterar o tempo, a duração... quero, pois, que o que for bom dure mais. E que dure menos o que for ruim.

"Tudo passa, tudo sempre passará" - tudo, tudo mesmo: o que é ruim passa, mas também passa o que é bom. Por isso, neste 2013 que está despontando seus raios para me iluminar, eu quero cuidar melhor de mim e das pessoas, das minhas coisas, do meu trabalho, dos meus sonhos... e também dos meus problemas. Claro: se tudo passa, eu também passarei.

Como diz Mário Quintana: "Todos que aí estão, atravancando meu caminho, eles passarão. Eu passarinho!"   Eu vou voar sempre para onde houver vida ("há tanta vida lá fora"). Assim como no mar, onde as ondas novas vêm por cima e as velhas voltam por baixo, que as ondas novas nos tragam vida e nos banhem com o que é bom; e que as velhas levem consigo o contrário. Feliz 2013 para todos nós.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Som de sim

"A arte de sorrir, cada vez que o mundo diz 'não'" é um verso que eu ouvia na voz de Maria Bethânia no final dos anos 70, quando vim de Minas para São Paulo, após uma sequência de 'nãos' que digladiavam com 'sins' no meio da minha infância.
 
Estou agora levantando a mão para fechar a porta de 2012. Olho com calma os trajetos que segui neste ano, as muitas conquistas, os sucessos, as alegrias, tanto sentimento de satisfação em vista de situações que receberam um sonoro 'sim'. Meu olhar também passa inevitavelmente pelo som do 'não', pelos tropeços, pelos planos que não deram certo, pelas expectativas não atendidas.
 
Entre as grandes expectativas, graças a Deus, nenhuma resultou em frustração. Entre as pequenas, no coliseu em que se engalfinham o 'não' e o 'sim', aquele tem levado vantagem sobre este em alguns poucos casos. E é por isso que neste momento, olhando pela fresta da porta entreaberta de 2012, eu desenho no meu rosto um sorriso de aprendizagem. Um sorriso tímido, mas seguro de si.
 
Reconhecendo os ardis que sustentam a força do 'não' e lamentando que o jogo limpo do 'sim' o torne vulnerável, é este sorriso que me faz olhar para trás e mirar o que é bom, o que faz o bem, o que dá à existência a sua nobreza. O ano está acabando, e eu "não tenho tempo a perder; só quero saber do que pode dar certo". Vou sorrir para o 'não' e amplificar a harmonia e a melodia do som do 'sim'.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Só junto

O velho Raul, que volta e meia é citado aqui, canta que "Sonho que se sonha só. É só um sonho que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto é realidade". E, como (quase) sempre, tem razão o danado. Assim como o sonho é inerente ao homem, o fato de ser gregário também o é.  "O homem é um ser gregário" - isso já dizia Aristóteles - o que eu mais admiro entre os filósofos.

Nesse sentido, ao que disse Fernando Pessoa ("Navegar é preciso. Viver não é preciso"), poderíamos - com todo respeito do mundo - acrescentar: sonhar é preciso. Duas razões me fazem acreditar nisso. Primeiro, porque, ao sonhar, entramos em contato com um universo simbólico revelador de muitas coisas que, muitas vezes, sequer admitiríamos em realidade. Segundo, porque, ao sonhar, podemos projetar nossa vida e enxergar por sobre o mundo imediato que nos cerca e nos engole. Sonhar é preciso.

Também é preciso estar junto. É preciso ser gregário. Não segregar. E, sim, agregar. A gente, junto, se acresce. Cresce. Junto, a gente divide um prato, um livro. Uma tarefa, um percurso. Um problema, uma dor. Juntos, a gente cria uma esperança maior e alimenta uma expectativa mais plausível. Juntos, a gente se faz e se refaz. Juntos, a gente cai e se levanta. Juntos, a gente vai mais longe - mesmo que o caminho é árido, estéril e inóspito (como em Vidas Secas, de Graciliano).

Daí a razão de Raul dizer que "sonho que se sonha junto é realidade", não a realidade pronta, mas a sua criação, a produção do real a cada dia, o real possível, o real buscado. O real "com-partilhado". Já o contrário disso se trata de um sonho. E só. Ou de um sonho. Sozinho. Sobre isso, as mais antigas tradições judaico-cristãs afirmam: "não é bom que o homem esteja só". É na companhia de outra pessoa que ele se constitui. É na companhia de outra pessoa que ele sonha.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Mãos de gigantes

Umberto Eco, em um de seus muito bons livros (Como se escreve uma tese) dá um conselho que comumente passa despercebido. Faço questão de destacá-lo aos meus alunos na Universidade. Segundo o autor, um dos segredos para se obter sucesso na pesquisa, é preciso apoiar-se nos ombros de gigantes. Isso porque, a partir desta posição, pode-se ver mais longe. 

Isso dá ao pesquisador a dimensão de que é preciso humildade para ser grande. Citar outros que já trilharam o percurso que se está iniciando é um sinal de grandeza. Assim é que crescemos: mirando-nos nos que são maiores que nós, seguindo seus passos, ouvindo seus conselhos, acatando suas orientações. O objetivo não ser igualmente grande, mas crescer.Vale para a pesquisa; vale para a vida.

Um pessimista me diria que a maior fonte de frustrações é o tamanho da expectativa. E complementaria com o inegável lugar-comum, segundo o qual "quanto maior a altura, maior o tombo". É verdade, não nego. Mas não se pode deixar de tentar subir, de tentar ser alguém melhor (sem que isso, é claro, implique menosprezo a quem quer que seja). É preciso querer ser grande, ser inteiro, como dizia Fernando Pessoa, e brilhar alto, como brilha a lua no alto céu e no seu reflexo no lago sereno.

A experiência que vivenciei hoje, foi de um aprendizado sem tamanho. Em uma das decisões mais difíceis que já tomei na minha vida, justamente para tentar crescer pessoal e profissionalmente, veio-me um telefonema no meio da tarde. Um telefonema de uma pessoa que, para mim, sempre foi um gigante de caráter, de profissionalismo e de competência. Recebi todo apoio necessário e, nesse sentido, vale a pena querer continuar subindo mais alto. E, caso eu caia, certamente estarei seguro pelas mãos de gigantes.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Tradição

Os versos de Renato Russo: "são crianças como você - o que vai ser quando você crescer" são tão intrigantes quanto outro: "Que país é este!". Por que intrigantes? Porque soam como perguntas. Mas não são: no primeiro uma afirmação, segundo a qual você será igual ao seu pai, quando crescer. No segundo, uma exclamação indignada. Vou me ater ao primeiro, porque tem a ver com tradição. Repassamos o que recebemos de nossos pais.

Tradição é o ato de trazer; de entregar. Assim, hábitos, crenças, valores, culturas são trazidas de geração a geração, valendo-se dos meios mais diversos: os pais que orientam os filhos, os professores que ensinam os alunos, os líderes que incutem seus seguidores, o Estado que institucionaliza práticas nos cidadãos ideologicamente. Mas, de toda forma, existe uma maneira de se manterem as coisas ao longo do tempo.

É evidente que tudo pode ser trazido, desde que conte com um mecanismo de tradição eficiente, que não rompa a cadeia, que fortaleça os elos. Dessa forma, tradicionalmente são mantidas tanto coisas ruins - como crenças discriminatórias - quanto coisas boas - como reuniões festivas (Natal, Ano Novo...). Quando alguém ou um grupo de pessoas acha conveniente, quebra-se a hegemonia de uma tradição. Neste caso, trai-se a tradição (aliás, parece que no italiano o verbo "tradire" tem o sentido de trair e de trazer...).

Mas o mais legal é que tradições podem ser criadas. Para serem mantidas e transmitidas. Criam-se, por exemplo, disputas esportivas, festivais culturais, práticas religiosas, encontros de amigos e tantas coisas boas que devem ser levadas ano a ano, de geração a geração, de pai para filho (que passará para seu filho, que passará para seu filho...). Como canta Nando Reis: "atrás do filho vêm o pai e o avô" - e que venham todos tradicionalmente fazendo o que for bom.

Para além do que se vê

Quando Tom Jobim relata que "o resto é mar, é tudo que eu não sei contar, são coisas lindas que eu tenho pra te dar", é momento de se parar para pensar para além daquilo que vemos. Especialmente quando pensamos sobre o que vemos das pessoas... e até de nós mesmos. Até onde vemos?

Em conversas com amigos hoje, amigos de longuíssima data, um deles revelava um relacionamento de um ano e meio, mais à distância do que presencial. Um relacionamento relativamente longo o suficiente para que ele se decidisse trocar a distância pela proximidade. Naturalmente, esperava encontrar as coisas que estava acostumado a ver à distância. No entanto, exceto para os que estão ficando mais velhos, ver de perto às vezes implica ver demais. Infelizmente, o que ele passou a ver do comportamento, do gênio, do modo cotidiano de ser da moça, fez com que preferisse uma distância maior do que a anterior. Incomunicável.

Por outro lado, ver de perto pode fazer com que vejamos mais do que estamos habituados a ver mesmo nas coisas e pessoas com quem temos convivência bem próxima. Neste ano, duas experiências me fizeram enxergar isso. A primeira foi quando vi meus alunos no palco do teatro da escola tocando, cantando, recitando... mostrando, para todos, que ali estavam mais do que alunos: estavam artistas - no sentido mais puro da palavra.

A outra experiência está sendo agora: assisto a um DVD que ganhei de Natal, de quem estou tendo imensa alegria de ver bem de perto. Trata-se de um disco gravado por Paul McCartney cantando apenas jazz. Imagine minha surpresa: um beatle, pilar do rock mundial, cantando jazz. Mas cantando tão bem, tão espontâneo, tão natural, que fico imaginando quanta coisa deixei de ver neste artista. E, por extensão, o quanto não deixei de ver nas pessoas o mar as coisas lindas que elas têm pra contar.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

24 de dezembro

"Eu nasci há 10 mil anos atrás e não tem nada neste mundo que eu não saiba demais", cantava Raul o refrão que quase todo mundo conhece... há menos de 10 mil anos, é claro. Mas, com todo o respeito que tenho pelo mago Raul, discordo de que caiba a alguém o fato de não haver nada no mundo que não se saiba demais.

É Natal, e nesta época do ano, tenho a felicidade de olhar para trás e ver quanta coisa boa aconteceu, quanta gente passou pela minha vida, quantas delas fortaleceram seus laços comigo - ao passo que outras infelizmente ficaram menores que a distância entre mim e elas. Lembro de cenas de casa, do trabalho; lembro de momentos ora muito agradáveis, ora tensos, mas todos são momentos em que pessoas estão envolvidas. Isso mesmo: en-volvidas. Voltadas para dentro. Para dentro da minha vida.

É a elas que eu quero agradecer. É a elas que quero dedicar minha atenção. Quero lhes dar meu abraço, meu olhar atento, meu sorriso sincero. São pessoas que quero presentear, sempre com coisas simples, que são ínfimas diante do tamanho da admiração que tenho por elas. São pessoas que me fazem saber que sei pouco sobre o mundo, que sei pouco sobre elas, que sei pouco sobre mim. Que sei pouco.

Por isso mesmo, ainda que eu vivesse há mais de 10 mil anos, eu não saberia tudo o que preciso. Daí o fascínio de se chegar à penúltima semana de um ano, poder olhar para trás e dizer o quanto ainda há para saber deste mundo, das pessoas que me dão a graça de sua companhia e de, por fim, saber de mim mesmo. Por sorte, tem sempre algo nascendo. É sempre Natal.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Sempre assim

"Que bom que todo dia vai ser sempre assim" é o refrão de uma música do JQuest. Com esse refrão na cabeça, coloquei-me a pensar em coisas que eu queria que "fossem sempre assim" e em coisas que "são sempre assim". Poderia refletir aqui sobre coisas ruins, por exemplo, sobre aqueles padrões de comportamento repetitivo, que nos fazem reagir sempre da mesma maneira às situações iguais: é o caso das birras das crianças contrariadas; das invejas das pessoas infelizes; das mágoas das pessoas menos fortes. Mas não vou fazer isso. ("Pelo menos esta noite, não" - como canta o Lobão).

Quero falar das coisas boas. Festa de encerramento de ano que as empresas dão, a meu ver, estão entre as coisas que se encaixam no refrão acima: "que bom que todo dia vai ser sempre assim". Um momento absolutamente agradável, quando a gente se dispõe a vive-lo, a aproveitar a presença dos colegas que batalharam em conjunto para conseguir mais um ano de êxito. Come-se, bebe-se, ri-se, abraça-se, conversa-se... vive-se um momento de compartilhar alegria.

Naturalmente haverá a lembrança de pessoas que já não integram o grupo; a recordação de eventos que não deram certo; a lamentação de metas que não foram atingidas; o comentário sobre situações de certa forma constrangedoras... e outras coisas que surgiram como consequência de uma série de outras que precisam ser corrigidas. Este é justamente o lado bom das coisas ruins: aprender com elas.

Agora, é fato que em encontros como esse, sobrepujam as referências às coisas boas. Aos calorosos apertos de mão; aos olhares que se cruzam profundamente; aos abraços sinceros... juntam-se falas elogiosas, congratulações, reconhecimentos. Mais: nos planos começam a ser gestados para ganharem vida no ano novo que se escancara diante de nós, grávido de coisas boas, das quais podemos dizer: "que bom que todo dia vai ser sempre assim".

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Ir e vir

Lembro-me aqui de dois textos nos quais quero amparar a reflexão que pretendo fazer hoje. O primeiro deles é um conto, da Rachel de Queiroz, chamado Amizade. Nesse conto, a autora narra uma amizade tão intensa, que uma necessária severa separação não foi suficiente para silenciar a relação que fazia com que um pudesse chamar o outro de Amigo.
 
Outro texto é um trecho da música de Milton Nascimento, em que ele afirma que "chegar e partir são só dois lados da mesma moeda". Poderia enveredar aqui pelo ying-yang, ou mesmo pelo Humanitismo de Quincas Borba, para afirmar que as coisas que constituem este nosso mundo não são opostas entre si; mas complementares.
 
Como a moeda, que, jogada para cima a girar sobre si mesma, define a sorte do "cara ou coroa", assim também são os destinos que com as nossas escolhas damos à nossas vidas em cada pedaço dessa existência na qual nos encontramos. É assim: tomamos decisões conscientes e desejosos de que vão desembocar em um ponto agradável deste mundo. E trabalhamos nisso, para que assim o seja.
 
Às vezes essas escolhas estão sob a égide de coisas muito grandes. Outras vezes, de coisas pequenas - como escolher a camiseta para vestir. Mas algo nos torna comum: o fato de estarmos diante de escolhas que nos aproximam e/ou nos afastam. E não há como fugir a isso, pois não escolher também é uma forma de escolha - talvez não seja a melhor. A todos é dado o direito de ir e vir.

Há um segundo

Antes de cantar o refrão "Cuide bem do seu amor, seja quem for", Herbert Viana canta: "Há um segundo, tudo estava em paz". Ouvia essa música hoje, indo para a Puc e pensando no Conselho de Classe que havíamos feito ao longo de toda a manhã de hoje no Colégio onde trabalho.

Uma esmagadora maioria de alunos tiveram a felicidade de migrar para a série seguinte. Por sua própria competência e por terem sabido lidar com as regras da escola, ganharam o direito de cursar a última fase de sua educação básica: o Ensino Médio. Outros, no entanto, não obtiveram o mesmo resultado.
 
Daí cabe a reflexão: esses meninos e meninas não foram reprovados ali, naquele Conselho. Mas antes. A questão é o quanto antes? Em que momento eles se depararam com uma dificuldade e não conseguiram transpor nem souberam desenvolver estratégias para superar. Em que momento decidiram estudar menos ou usar subterfúgios? Em que momento decidiram contar com a boa-vontade de um Conselho?
 
Em que segundo "tudo estava em paz"? Quando e por quê deixou de estar? Por que motivos não se ouviu o rumor da quebra da paz? Até que segundo a confiança foi maior do que a prudência? Mais: quantas vezes esse segundo vai voltar? Em que situações? Sim, porque ele é igualzinho a todos os segundos. O barulho do pêndulo ou a mudança do caracter digital é sempre igual e na mesma regularidade. O diferencial é o que fazemos no segundo em que tudo está em paz.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Se perto, mais perto

A peça "Orfeu da Conceição", de Vinícius de Moraes, é uma adaptação da narrativa do mito de Orfeu. Vinícius reconta a história fazendo-a acontecer nos morros cariocas de sua época. Esta foi uma das últimas apresentações que fiz em teatro. Lembro-me bem de um trecho de fala de Orfeu, em que ele diz para Eurídice um dos mais preciosos discursos para uma mulher amada. A certa altura, ele fala sobre o que ela o faz sentir: "...esta vontade de estar perto, se longe; ou de estar mais perto, se perto".
 
Bem sei que não expor aqui o texto todo é quase um pecado. Vale a pena ler todo, cada linha. Nesse trechinho que citei há um quê de sensibilidade que revela o sentimento que banha o coração apaixonado, que quer estar o mais perto possível da pessoa (ou mesmo da situação, da coisa, da lembrança...) que é tão amada.
 
Estar perto, ou no mínimo estar por perto, é sinal de uma proximidade que está para muito além da simples redução da distância física ou espacial. "Estar perto, se longe; ou mais perto, se perto" é questão de se sentir mais vivo; é se sentir em condições de oferecer/receber o que há de melhor para se oferecer: a vida que brota de cada um de nós.
 
Não se trata de viver o dia a dia como um escritor romântico, idealizando a vida, as situações, as pessoas; ou ainda viver em um mundo fantasioso, fruto de um escapismo resultante de insucesso. Não se trata, absolutamente, de fugir ou de evitar o que há de ruim para se viver. Trata-se, sim, de saber escolher aquilo de que ou aqueles de quem queremos estar perto. É como canta o Lenine em uma de suas mais bonitas músicas: "Quando eu olhar pro lado, eu quero estar cercado só do que me interessa". 

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Faz tão bem

Lulu Santos, que ficou mais famoso agora depois de sua participação no The Voice Brasil, como já disse aqui várias vezes, tem um timbre de voz interessante, um melodia bem trabalhada e uma harmonia agradável, além, é claro, de letras instigantes para suas canções. Já citem algumas aqui, e certamente acontecerá de eu citar outras ou a mesma em outra ocasião. Gosto dos versos "Ela me faz tão bem, que eu também quero fazer isso por ela".
 
Independentemente de quem ou do que for o "ela" que cada um quiser colocar no lugar do "ela" daquele verso, é importante saber que alguém ou algo que nos faz bem em sua interação conosco merece ser mantido, porque o bem é uma estrada de mão dupla, é um espelho que recebe e reflete imagem, é um corpo que enfeita a si mesmo. Para certas pessoas (excluo aqui as interesseiras), fazer o bem muitas vezes não tem os outros como beneficiários; mas a si mesmas.
 
O verso diz que fazer o bem a ela é a consequência de ela fazer o bem. Assim, parece-me importante ter em mente o tempo todo, como um alarme, como um lembrete de geladeira, como um laço no dedo e, sobretudo, como uma consciência perene o fato de essa reciprocidade precisa ser mantida, cultivada, reavivada; precisa ser ampliada, fortalecida, acrescida para que esse bem se torne bem maior. Para que se torne um bem maior.
 
O veneno contra isso será a acomodação ao status quo, à condição de mero espectador daquele bem recebido. Como na parábola, segundo a qual enquanto um dos filhos multiplicou o bem recebido a cento por um, o outro pegou o bem e o enterrou no quintal. O Bem não está diante de nós para ser enterrado e desalmado, mas para fincar-se em nós em gerar frondosas, copadas e frutíferas árvores.
 

domingo, 16 de dezembro de 2012

Bom

Na música Bom Pra Você, Zélia Duncan sugere: "Faça o que é bom, sinta o que é bom, pense o que é bom. Bom pra você". Adoraria transcrever a letra toda, mas fica aqui a sugestão de que se leia e se ouça a música toda. Nisso o Youtube pode nos ajudar e muito. Acessar coisas boas no Youtube também é bom.

Difícil é definir "o que é bom". Mais ainda é definir "o que é bom pra você", na medida em que tanto o "bom" quanto o "pra você" são expressões absolutamente variáveis não só de pessoa para pessoa (o que é óbvio e me irrita dizer), mas é variável na própria pessoa. Em contextos diferentes, o "bom" pode ser uma coisa ou outra para a mesma pessoa. E vice versa. Como diz o Oswaldo Montenegro na música A Lista: "Quantas canções que você não cantava, hoje assobia pra sobreviver?"

Pois é. Cá com meus botões, com toda a chance do mundo de estar errado, penso que o bom é como o justo. Isto é: bom é aquilo que deve ser. Talvez esteja aí o parâmetro (não menos variável, é claro) para saber se estamos fazendo, sentindo e pensando o que é bom. O que fazemos, sentimos, pensamos etc. é aquilo que deve ser feito, sentido, pensado etc.?

Para que o bom torne-se melhor, não basta que seja bom apenas para mim. Tem que ser também para o outro. Porque eu só sou eu à medida que existe um outro. Para não mergulharmos nas águas turbulentas e traiçoeiras do egoísmo, o que for bom há de ser para mim e para o outro.

Nós: criadores

"Is this the world we created?", cantava Fred Mercury em uma de suas canções de apelo social. Realmente, o artista que imortalizou refrões como "We are the champions" e "We will rock you", além de tantos outros em tantas melodias milimetricamente construídas por ele mesmo para cada instrumento e voz, tinha o que dizer sobre o mundo que (e em que) ele vivia.

Há muita coisa nesse nosso mundo que talvez não devesse estar aí. A própria música que citei acima fala de crianças famintas e desprotegidas, por exemplo. Corrupção em todas as esferas cotidianas; violência de toda natureza: física, econômica, psicológica...; doenças, injustiça, indiferença. Não há dúvida de que somos inteiramente responsáveis por tudo isso. Se isso não é o, isso está no mundo que criamos. Ora, agora me ocorre Chico Buarque: "você que inventou a tristeza, tenha a fineza de desinventar".

Infelizmente - e acho que isso é do ser humano e não de individualidades - temos uma imensa capacidade de valorizar as coisas negativas em detrimento das positivas, as quais jogamos no buraco do esquecimento e cobrimos com a terra da rotina; coisas que deitamos na cama do silêncio e cobrimos com o cobertor da correria. Temos tanto sorriso para dar, tanto abraço para receber, tanto incentivo para oferecer; tem tanto brilho no dia, tanta beleza na noite; sobra verde nas vegetações e aroma nas flores. Há tantas vitórias a contar e outras tantas sendo construídas... Para essas coisas boas é que meus olhos querem se abrir.

O mundo que criamos a cada momento tem de tudo, e a cada dia terá mais coisas. Boas e ruins. Misturadas, potencializadas. Estão aí para serem valorizadas por nós. Questão de escolha: as coisas ruins; as boas. Tomara que a gente consiga criar algo para desinventar a tristeza que nós mesmos pusemos no mundo que vivemos.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Saber perder

Em 1962, tempo em que ainda tinha muito prestígio o uso do pronome TU, um cantor negro excelente, chamado Noite Ilustrada cantava: "Reconhece a queda. Não desanima. Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima". Lição maior de perseverança talvez seja pouco possível encontrar. Lição maior de como lidar com a perda, também.

Duas experiências hoje me fizeram reafirmar aquilo em que sempre acreditei e aquilo que muitas vezes na vida precisei colocar em prática: é preciso saber perder. A partir do momento em que entramos numa batalha, a derrota se torna uma das possibilidades. O problema nem é a derrota em si, mas o modo como lidamos com ela, isto é, como a absorvemos em nossa vida. Ou, ainda, se sabemos utilizar a derrota contra nós ou a nosso favor.

No início da noite, quando fazia a arguição de uma aluna que defendia seu trabalho de conclusão de curso, no exercício do meu papel de avaliador, precisei dizer a ela o que aquele TCC tinha de bom e, até pela grande quantidade, precisei também dizer os pontos em que o trabalho precisava melhorar. Reconhecendo que sua pesquisa realmente carecia de melhoria, com olhos marejados, aquela aluna aprendeu e apreendeu o que lhe fora dito. Mais: comprometeu-se consigo mesma a superar, por si própria, aquelas dificuldades.

Quando a noite terminava, assisti a um jogo de futebol - gosto muito de assistir a partidas decisivas, pois cada minuto é disputado como se fosse o último. Mas, para surpresa geral, um dos times - que terminou a primeira etapa do jogo perdendo por dois gols de diferença - não voltou ao campo de jogo. Abandonou a batalha. Dessa forma, não só deu ao adversário presente o título de campeão, como também perdeu a oportunidade de aprender a perder, pois não se levantou, não deu a volta por cima e, por consequência, vai ficar com a poeira desta derrota sobre si para sempre. Assim como o pronome TU, perderá o prestígio.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Olhar, ver e entender

A primeira vista. Esse é o título de uma das músicas mais bonitas de Chico César, outro cantor e compositor cujas músicas e letras muito me agradam. Nesta, um dos versos é: "Quando o olho brilhou, entendi". Quero me valer desse verso para a reflexão de hoje, que é, de certa forma, uma continuação do que publiquei ontem.
 
Penso que o lugar-comum segundo o qual "de ilusão também se vive" tem seu lugar no dia a dia de muita gente. Já postei aqui uma experiência minha em que, ao ensinar literatura aos meus alunos de 9º ano, desenvolvi com eles a ideia de que as ilusões muitas vezes são necessárias para atenuar o peso de certos momentos da vida. Acredito que muitos têm a ilusão de que são uma coisa, um ser, um elemento isolado no mundo; único; separado de tudo e de todos.
 
Até certa idade da vida, os bebês acreditam firmemente que tudo o que há e todos à sua volta são uma extensão de si mesmos. Por isso, choram aos berros quando lhes tiram um carrinho, uma boneca... ou mesmo quando nos afastamos deles. Parece estar sendo tirado algo deles; algo que não sabem se voltarão a ter. Ou, ainda, parece estarem sendo tirados das coisas. Quando as coisas ou as pessoas voltam, seus olhos brilham. Quando as coisas ou pessoas voltam, eles entendem. Porque voltam a se ver completos.
 
Quando amamos algo ou alguém, nossos olhos brilham de modo a intensificar nosso objeto de amor. Nossas pálpebras se abrem e se fecham num movimento que traz esse objeto para dentro e o conduz para fora sem que pareça que ele está dentro ou fora. Está em nós. Determina e é determinado pelo nosso olhar. É por olharmos assim o objeto do nosso amor, que conseguimos finalmente entender. Porque nos vemos completos. E nisso (também) Chico César tem razão: "quando o olho brilhou, entendi".

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Olhos: espelhos retroflexos

Gosto do Beto Guedes, um daqueles muitos mineiros do famoso Clube da Esquina. Assim como Chico Buarque, Nando Reis, Guilherme Arantes (entre os homens) e Fernanda Takai (entre as mulheres), Beto Guedes é daqueles que têm pouco tônus vocal, mas um imenso poder de cantar frases que encantam, ensinam e calam na gente. Um dos versos dele diz: "Seus olhos são espelhos d'água".

Associo aqui esse verso a duas experiências inesquecíveis para mim e que fizeram a minha vida ser melhor. Ambas, ligadas aos olhos. Uma delas, debaixo de uma lua que insistia em não deixar sua luz emudecer diante da noite escura, se deu ao som da música do Chico Buarque, especialmente os versos "Morena dos olhos d'água, tire os seus olhos do mar. Vem ver que a vida ainda vale o sorriso que tenho pra lhe dar".

A outra se deu também nos limites escuros da madrugada que insistia em se fazer passar silenciosa, inexorável em sua marcha na direção dos raios do sol que tardava vir. Minha memória se esforçava para alcançar o texto de Ítalo Calvino, que - no livro Cidades Invisíveis - narra viagens de Marco Polo para descrever ao Rei Kublai Khan as cidades de seu reino - que este desconhecia.

Para Calvino - na voz de Marco Polo -, são nossas pálpebras que nos separam do mundo que vemos, das pessoas com quem convivemos. A certa altura da vida, já não sabemos mais distinguir com nitidez o que fica para dentro das pálpebras daquilo que fica para a fora delas. O ser das coisas e as pessoas externas a nós se misturam com o ser que somos nós, a ponto de não sabermos se vemos o que realmente vemos ou se vemos o que queremos ver - a nossa projeção sobre o que e sobre quem vemos. Nossos olhos: espelhos retroflexos.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Óbvio ululante

Lá pela década de 50 do século passado, Nélson Rodrigues cunhou a expressão "Óbvio ululante". Como tantas outras do autor, essa expressão ficou integrando o imaginário coletivo brasileiro, muitas vezes com o sentido alterado, dado o desconhecimento do adjetivo "ululante". Já ouvi, muitas vezes, pessoas dizerem óbvio nulante, óbvio lulante... e por aí afora.

Ululante é a característica daquilo que ulula, isto é daquilo que grita. Nesse sentido, a expressão significa que algo é tão claro, tão explícito, tão nítido, que é impossível não perceber. Não se trata de um óbvio simples, mas de um óbvio óbvio, se me permitem o recurso da repetição como intensificador. Considerando que óbvio é a característica daquilo que (de tão claro, lógico e aceito) não requer esclarecimento e que é axiomático e incontestável, podemos deduzir que é óbvio ululante.

Naturalmente há coisas que são absolutamente óbvias para algumas pessoas, e não o são para outras. Desde coisas simples como reconhecer uma hipotenusa ou um zeugma até coisas mais complexas, como saber o que pode e o que deve ser dito em determinadas situações. Quebrar o óbvio pode não ser uma boa ideia, especialmente se se tratar de um óbvio ululante. A não ser que seja óbvio que determinado óbvio deva ser quebrado. Ainda que seja ululante.

Claro que tudo que existe, existe dentro de uma rede de composição e de significação que faz as coisas, ideias e relações serem como são. Por legitimação, tornaram-se óbvias e, por isso mesmo, acreditamos nelas assim como são, assim como se afiguram diante de nós. Salvo uma grande e premente necessidade de 're-volução' ou de leves e perenes mudanças, vale respeitar o óbvio, pois ele é aquilo que mantém coesas as coisas, ideias e relações. O óbvio ululante... muito mais.

Eu sou: identidades

Voltando para casa hoje, ouvindo música e cantando, como sempre, me deparei com uma cena inesperada. Diante de mim, na escada rolante que subia tanta gente, uma mocinha deixou cair sua identidade e não percebeu. Gentilmente, me abaixei, peguei o documento e o restituí a ela, que agradeceu e seguiu "para o alto e avante". Aquilo me fez pensar sobre identidade. Ou melhor: sobre identidades.

"Eu sou a luz das estrelas. Eu sou a cor do luar. Eu sou as coisas da vida. Eu sou o medo de amar. Eu sou o medo do fraco; a força da imaginação; o blefe do jogador. Eu sou! Eu fui! Eu vou! Eu sou o seu sacrifício. A placa de contramão. O sangue no olhar do vampiro e as juras de maldição. Eu sou a vela que acende. Eu sou a luz que se apaga. Eu sou a beira do abismo. Eu sou o tudo e o nada". Além dessas, muitas outras definições Raul vai dando de si ao longo da música Gita.

É claro que ele não está falando de si mesmo (Raul Santos Seixas, nascido em 28/06/45). Um eu-lírico é que fala no poema. De identidade tão múltipla e variada. Tão mutante e desigual. Tão dinâmica e tão fixa (enquanto é). Uma identidade que se refaz, que se reconstrói. Que se entende como parte de tudo, como parte de um todo no qual ela mesma está inserida. Não, não se trata de uma identidade lábil, volátil, frágil e imprecisa. Não se trata de uma identidade esquizofrênica, mas rica em possibilidades.

Foi-se o tempo em que se achava que nossa identidade era como um bloco único, um monolito que já nasce de um jeito e morre desse mesmo jeito. Foi-se o tempo em que o diferente era apenas o outro. Já vai longe a época em que se acreditava que haveria necessariamente um eu e um outro, como duas realidades totalmente dissociadas. Não: hoje se sabe que o um só se constitui na dinâmica da existência do outro. Os vários uns e os diversos outros são parte de um todo maior, que é esta humanidade - ao mesmo tempo única, ao mesmo tempo múltipla. Assim como as identidades: feitas, refeitas perdidas, achadas, acrescidas, alteradas... 

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Revelações

"Tudo aqui quer me revelar, unha roídas, ausências, visitas, flores na sala de estar...", canta Zélia Duncan em mais uma de suas belíssimas letras que são revstidas de uma voz bonita, forte e muito afinada. E, de fato, nesta música, eu sempre paro e penso nas coisas que me revelam e nas coisas que nos outros os revelam.

Ontem pude conduzir um sarau de fechamento de 9ºano, que envolveu um número muito grande de alunos, direta e indiretamente envolvidos. Além dos alunos, estavam envolvidos também professores, funcionários do Colégio... sem contar naturalmente as famílias que sempre participam da elaboração do que os filhos fazem.

No palco, em meio às apresentações de músicas, de poemas, de danças e de tanta coisa bonita, muito daquilo trazia para mim, a cada minuto, um flash a mais dos alunos, uma visão que ainda não havia reparado, um ângulo, uma faceta, uma parte da alma deles que eu ainda não conhecia. Dois pensamentos me assaltaram a concentração e a emoção.

O primeiro veio por meio de um chavão, por meio de um lugar-comum que, de tão utilizado perdeu sua força argumentativa e, até mesmo, semântica: o que os olhos não veem, o coração não sente. Realmente, eu não via muito daquilo que, emanando dos alunos, se afigurava diante de todos nós. O outro pensamento foi o de que esta visão aberta para o prisma que compõe cada aluno impede que os vejamos apenas como alunos. Naturalmente isso se espalha para toda e qualquer pessoa, pois tudo em cada um de nós quer nos revelar.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O melhor

Quem ouve a música "Infinito Particular", de Marisa Monte, se depara necessariamente com os versos iniciais: "eis o melhor e o pior de mim". Pus-me a pensar nisso hoje, que foi um dia atribuladíssimo, com aulas, ensaios, pagamentos de conta, encontros de trabalho, passeio com filhas e tanto mais. É madrugada (embora o horário do blog tenha sempre um estranho "fuso" de 6 horas a menos). E eis-me aqui para fechar o dia escrevendo.

Primeiro, é preciso destacar que as pessoas ideais, das quais somente viriam coisas boas, em gestos, palavras, atitudes etc., ah... essas aí, sei não, viu? Acho que só existiram na formulação de Platão, naquele que ele chamou de "mundo das ideias". As mulheres que buscam o homem ideal, os pais que procuram os filhos ideais, os professores que sem embrenham atrás de alunos ideais, empresários atrás de profissionais ideais, eleitores que querem eleger polísticos ideais... Tem não.

Também não dá para dizer que ninguém é bom. Esta não é uma ideia completa (se é que o há). Ninguém tem coração no qual só habite o mal, ninguém maquina maldade o tempo todo. A composição do nosso ser é um tanto mais complexa do que imaginou Maniqueu (que, aliás, ao conceber tudo como uma realidade dual na qual só existem o bem e mal, acabou propiciando a criação do termo "maniqueísmo"). Talvez seja mais complexa do que propôs Freud, mais simbólica do que defendeu Jung...

O fato é que o bem e o mal estão em nós e ajudam a constituir a nossa natureza. Em nós, sem a menor sombra de dúvida, estão o melhor e o pior. Daí, uma questão de escolha: o que temos a oferecer para nós mesmos, para o nosso próximo, para o nosso mundo. Que líquido tem na nossa garrafa? Que palavras há no livro que somos nós? O que escolhemos dar a beber? O que escolhemos oferecemos de nós para que leiam? 

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O olho do tigre

Uma das músicas mais encorajadoras, tanto por sua letra quanto por sua melodia, seu ritmo, seus arranjos é "Eye of the tiger", do Survivor. É a mesma que foi tema do filme Rocky Balboa, estrelado por Sylvester Stallone, em sua época áurea. As batidas da música pareciam entrar como som de cada pancada que Rocky dava em seu adversário, que lhe parecia indestrutível, e, por isso mesmo, extremamente desafiador. Aliás, este foi o nome que o filme recebeu no Brasil: Rocky III - o desafio supremo.

A música é tão boa, que fez o filme concorrer ao Oscar na categoria de melhor canção. É muito interessante a parte da letra que diz: "É o olho do tigre, é a emoção da luta crescendo ao nível do desafio do nosso rival". A música é de 1982; já faz um bom tempo, mas ela continua a motivar muita gente hoje - especialmente daqueles que aprenderam a usar a seu favor o tamanho do desafio que se apresenta a eles. Sim, aquele tipo de gente que, diante de uma dificuldade extrema, enxerga-a como uma oportunidade.

Tive hoje a feliz oportunidade de assistir ao jogo semi-final de basquete de um time que um ex-aluno meu integra. Jogo duro, pau-a-pau, como dizemos na gíria esportiva. Adversário árido, que disputava milímetro a milímetro da quadra o direito de ir à final. Como armador do time, as principais jogadas passavam por suas mãos, fosse para atacar, fosse para defender. Fez cestas importantíssimas ao longo do jogo - cestas de quem chama para si a responsabilidade pela vitória diante do adversário.

Mas nenhuma foi tão bonita e importante quanto aquela. Jogo empatado até os últimos 5 segundos. Bola sai em lateral para a equipe do meu aluno. Diante de todos os seus adversários que o olhavam com "eye of the tiger" esperando um erro para dar o golpe final, ele recebeu a bola e numa velocidade e plasticidade incríveis, passou por três adversários e, não só fez a cesta, como também sofreu a falta que ele mesmo converteu e mais um ponto. Brilhante: diante do "desafio supremo", a despeito do cansaço, de sua baixa estatura e de seu corpo ainda franzino, partiu para cima do olho do tigre e voltou de lá com a vitória e o reconhecimento de todos. É... o esporte é mesmo uma metáfora da vida.


sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Falar ao coração

Gosto do timbre de voz do Lulu Santos, da sua musicalidade e de muitas de suas letras. Tudo isso junto eu admiro, por exemplo, na música Certas Coisas, em que ele diz que "tudo que cala fala mais alto ao coração". Essa história de falar ao coração sempre me encantou, ainda mais para mim que há quase vinte anos falo à razão dos meus alunos.

E era justamente "falando" pelo celular com uma aluna hoje, via face, enquanto eu almoçava depois de sair de minha aula de canto, que tive novamente esta sensação de falar ao coração de alguém. É muito boa essa sensação, porque o discurso vibra em lugar diferente, parece sair do coração. Meu Deus!, quanto isso parece ser pedante, piegas, brega. Mas pouco posso fazer se esta é a realidade que vejo: parece dar a certeza de que o que falo vai diretamente ao coração de quem ouve. Ou melhor: neste caso é de quem lê.

Pois  bem. Esta menina, concluinte do 9º ano, pôde aprender os primeiros passos de poesia. Ensinei à turma toda a parte técnica de metrificação, rima, ritmo etc. Mas este não era meu foco. Era, antes, ressaltar aquela possibilidade diferenciada de dizer as coisas; era aquele universo levemente acima deste mundo material em que todos gastamos nossos dias; meu foco era mostrar aos meus alunos que há outros canais de expressão que eles podem acessar para vestirem suas ideias.

No último dia de aula, ela me trouxe um poema que ela mesma compusera. Não tardei em elogiar, em destacar a beleza dos versos, o arranjo das palavras, a musicalidade do texto. Mal viu ela o quanto me controlei para domar a emoção que me tomou naquele momento diante dos outros alunos. Hoje, ela me mandou outro poema, enquanto eu almoçava pensando no que escrever hoje neste blog. Outro poema muito bonito dela. Fiz-lhe dois pedidos: que se deixasse ser conduzida mais vezes pelas palavras para dizer coisas simples, de modo que pudesse fluir sua ideia em forma de poema uma vez por semana. Orientei que amadurecesse o pensamento nos primeiros dias e que escrevesse e me enviasse o poema ao final de cada semana. A segunda coisa que lhe pedi foi que lesse o poema "Procura da Poesia", de Drummond.

Vida besta?

"Eta vida besta, meu Deus". É assim que Drummond conclui o poema Cidadezinha Qualquer. Depois de afirmar que "Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham", ele fecha com esta chave de ouro: "Eta vida besta, meu Deus". 

Esse itabirano sabia das coisas. Se, por um lado, reverenciava as características da vida no interior, especialmente no plano das relações pessoais e familiares, por outro - como se lê em Sentimento do Mundo, Drummond clamava contra o que não fazia sentido no mundo. Um olhar local que não perde o global. E vice-versa. O um e o todos. O um no todos. Para ele, de besta, a vida não deve ter nada.

Esses versos dele vêm à minha mente agora neste final de dia em razão de uma experiência que vivenciei no final da tarde. Quando a vida da gente vai entrando num ponto em que ou tudo vai muito devagar ou em que tudo vai muito depressa... tão depressa ou tão devagar, que começa a perder o sentido, parece-me ser a hora de colocar o pé no freio. Ou no acelerador - dependendo do caso.

Coloquei-me hoje numa situação que há muito acalentava, mas que não tinha tônus suficiente para dar o primeiro passo em direção à mudança. Como dizem, o primeiro passo é o mais difícil de todos. Mas, uma vez dado para nos tirar da chamada "zona de conforto", é preciso dar o segundo passo, o terceiro... até reajustar a vida àquilo que acreditamos ser o melhor. É preciso lançar-mo-nos aos desafios que abrem perspectivas fascinantes; desafios que vão nos colocar à prova; que fazem a vida deixar de ser besta.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Quem acredita

Uma das músicas do Renato Russo que pegam as pessoas pelo refrão simples e forte é a "Mais uma vez". Ele inicia a canção afirmando que "Mas é claro que o sol vai voltar a brilhar mais uma vez" e, depois de algumas estrofes, ele emenda o refrão "Quem acredita sempre alcança". Aquele "Mas", aparentemente sem sentido por não ter nada antes dele para fazer oposição, opõe a afirmação que o segue a toda uma crença negativa que puxa a pessoa para baixo, para o insucesso. É como se o poeta estivesse respondendo a alguém que pensasse "Acho que o sol não vai mais brilhar para mim".

Há muitos posts, afirmei aqui que um dos meus principais objetivos de vida é cumprir meu papel de oferecer às minhas filhas as condições necessárias para que cresçam saudáveis, fortes, honestas, responsáveis, determinadas e, sobretudo, felizes. Eu acredito nisso e sei que vou alcançar. Tomando apenas o ponto de vista escolar, uma delas já cursa o Ensino Médio - vai agora para a segunda série (a penúltima série de sua formação básica). É curioso: nesses dias, temos conversado sobre vestibulares,  faculdades, profissões... "Ainda outro dia", a gente discutia com muito gosto o cardápio da semana para a lancheira. O tempo passou e fortaleceu aquilo em que acreditamos.

Já a menor, depois de esperar pacientemente este momento, viaja daqui a pouco com sua turma para comemorar o fechamento de um ciclo - o do Ensino Fundamental II. Está indo feliz e muito merecidamente, porque - embora faltem alguns dias oficiais para o encerramento das atividades curriculares - ela soube conduzir o ano de modo a chegar ao seu final com as duas mãos no triunfo. Taí uma pessoa que não desacredita, motivadíssima sempre, cheia de energia para superar dificuldades - sejam elas de que natureza forem.

Penso, e aprendo com minhas filhas, que acreditar seja uma atitude, um gesto de quem tem o olhar fixo em algo (sem descuidar de si e do seu entorno) e caminha na direção desse algo, desse objeto sobre o qual se deposita esperança, pelo qual se renovam as expectativas, algo a que se atribui crédito, algo, por fim, em que se acredita.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Sempre mais

"Eu quero sempre mais! De ti", canta a banda Ira!, na inconfundível voz do Nazi, acompanhado da Pitty, em uma gravação especial para o Acústico da MTV. É muito legal acompanhar bandas assim: como Titãs, Paralamas e outras, o Ira! gravou um acústico dando mais de si. A gente sempre espera mais das coisas de que a gente gosta.

Não somente das coisas, mas (e principalmente) das pessoas. Sim, elas têm sempre algo a mais para dar. E, na verdade, acho que em nossas relações interpessoais há dois movimentos que sustentam esse "dar sempre mais de nós". O primeiro é o nosso desejo de manter um clima tão agradável na relação, que não nos importa doar um pouco mais de nós. Aliás, isso não incomoda mesmo. Pelo contrário. O outro movimento é o da pessoa que gosta da gente. Ela vê sempre algo mais, porque tem gosto em nos descobrir, em desvendar o modo como somos.

Curioso é que esse doar-se sempre mais, considerando esses dois movimentos (ora consciente, ora não) quase nunca está relacionado a valores materiais. Não estou falando aqui de dar uma flor hoje, um vestido amanhã, uma brilhante depois... não, não: isso é pouco. E já disse aqui (em outros posts) que essas coisas materiais perdem valor rapidamente pela insaciedade voraz de quem recebe. Esse doar-se sempre mais a que me refiro pode estar nos gestos mais singelos e despretensiosos.

Um olhar mais sustentado; um minuto a mais de atenção; um sorriso espontâneo e gratuito; um abraço mais demorado ou mais forte; um gesto de carinho; uma palavra de incentivo; um elogio inocente; uma crítica pertinente; um comentário acertado; um ombro amigo, um "sou todo ouvidos"... são formas de a gente dar um pouco mais de si para quem a gente gosta.

domingo, 25 de novembro de 2012

Do brilho

"Nobody knows where you are, how near or how far. Shine on you crazy diamond" são versos que compõem uma das mais bonitas músicas do Pink Floyd. Ela foi escrita em homenagem a um dos membros da formação original da banda - Syd Barrett - que, apesar de sua genialidade ou em razão de sua genialidade, escolheu percorrer intensamente caminhos que trouxeram escuridão ao brilho que dele emanava. Não se sabia mais se aquilo que dele se via era ele perto ou ele longe. Era um "ele" sem luz.

Como as coisas podem parecer simples e serem tão imensamente complicadas? Todo mundo sabe que a nossa vida é o resultado das escolhas que fazemos a cada momento. Todo mundo sabe quando corre riscos que vale a pena correr... e sabe os riscos que podem ser fatais. Talvez resida aí o problema: saber todo mundo sabe, mas muitas vezes o saber e o querer não falam a mesma língua. Suplantando a razão, a vontade se faz prevalecer e dá a algo um brilho extremamente intenso, capaz de cegar a razão... um brilho que redundará em escuridão.

Nisso tem algo de paradoxal, tão paradoxal como a beleza do canto das sereias, que emudece por completo a voz de alguém que apostou nele a possibilidade de brilhar mais. Parece loucura, mas a escuridão iminente que abocanha a vida de alguém se disfarça de objeto brilhante e irrecusável justamente para tirar o brilho daquele que se curva aos seus pés.

É curioso ver como luz intensa ou ausência de luz fazem a nossa vista ficar debilitada, tão depauperada que se torna incapaz de saber o que está subjacente. Daí decorre que o cérebro vai interpretar aquilo apenas com as informações de que ele dispõe - razão pela qual muitas vezes alguém deixa de brilhar como diamante e passa a ser pedra comum. Tão comum, que ninguém mais sabe onde ele está, quão perto ou quão longe. Assim como Syd Barret.

sábado, 24 de novembro de 2012

Nossa casa interior

Num dos períodos mais difíceis que já enfrentei, tive a feliz oportunidade de conhecer a música de um poeta mineiro - de nome estrangeiro: Vander Lee. Ele ficou famoso quando as rádios passaram a reproduzir sucessos seus como "Esperando aviões" e "Românticos". Mas naquele momento da minha vida, eu gostava de ouvir a música "Meu jardim".

Reproduzo aqui uma parte: 
"Tô soprando minha brasa, minha brisa, meu anjinho.
Tô bebendo minhas culpas, meu veneno, meu vinho.
Escrevendo minhas cartas, meu começo, meu caminho. 
Estou podando meu jardim. Estou cuidando bem de mim".

Afora a estrutura triádica dos primeiros versos, muito me encanta o fato de se podar o próprio jardim e também o de cuidar bem de si. Nem tudo que cresce em um jardim deve estar grande, irregular ou muito exposto. Podar isso tudo às vezes se faz necessário, para que o jardim fique mais coerente consigo mesmo e, portanto, mais bonito. Para si, para os outros. Suas cores, sua harmonia, seu aroma, a suavidade de folhas e pétalas serão o sinônimo da vida que exala dele.

Tem uma rua aqui perto de casa, por onde passo sempre muito tarde da noite, voltando da Universidade. Quando estou nela, abro as janelas do carro e diminuo a velocidade. Naquele ponto do trajeto, a escuridão da noite é banhada pelo aroma das flores de jardins cultivados ali. Assim são os jardins bem cuidados: espontânea e naturalmente, dão aos outros, inclusive a desconhecidos, o gosto de existir a cada momento.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

"Pare ser"

"Parece que é, mas não é", dizia o slogan de um antigo produto para cabelos - Denorex. Quem é da minha idade vai se lembrar bem. O produto, cuja embalagem parecia ser de shampoo - mas não era - foi muto popular à época. Quem olhasse para o frasco sem a devida atenção, acreditaria estar vendo um frasco de shampoo.

Quando eu dava uma aula sobre interpretação da realidade, contaram para mim a história  de uma senhora que ao voltar do trabalho tarde da noite e passar por um lugar (à época) afastado, escuro e rodeado por cerca de arame farpado, tremia. O medo a assaltava impiedosamente, sobretudo, quando sobre uma ou mais das estacas que formavam a cerca tinha presa em si uma sacola plástica ou um saco de papel - daqueles de padaria. Nada demovia aquela mulher de que, no breu da noite, aquela estaca coberta por uma sacola, não era uma pessoa ou uma assombração.

Por mais que os olhos dela vissem a forma estranhíssima que em quase nada lembrava uma silhueta humana, não tinha jeito: ela via uma forma de homem. E por optar ver assim, mesmo antes de chegar àquele lugar, já era vitimada pelo medo, pelo pânico, que fazia sua pulsação triplicar, sua respiração quase congelar, seus músculos enrijecerem e suas pernas ficarem prontas para... voar.

O que é, é. E o que não é, não é nem pode vir a ser. Isso diziam os filósofos pré-socráticos numa tentativa de interpretar a realidade de modo unilateral - o que era um tanto adequado para sua época. Mas hoje, em tempos de pós-modernidade é difícil definir o que é ou o que não é, uma vez que as coisas não são, mas estão sendo. É assim com todas as impressões que temos, do mundo exterior e também do interior de nós mesmos. As coisas que julgamos ser, podem não ser. E vice-versa. Ou não.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Verdades e Veredas

"Diga a verdade, doa a quem doer; doe sangue e me dê seu telefone", canta Humberto Gessinger - dos Engenheiros do Hawaii na música intitulada Piano Bar, que tem versos tão impressionantes quanto esse que utilizei para abrir a reflexão. Há situações em que verdades simples precisam vir à tona; há situações em que verdades complexas precisam vir à superfície mostrar sua face - doa a quem doer. Quando elas vêm, abrem-se veredas certas; quando não vêm, abrem-se certas veredas.

Quando adolescente, fui demitido de uma empresa por seu presidente (e dono) num dia em que eu gentilmente cobria a falta de um funcionário. Fui procurado por um cliente que precisava falar com o presidente. Pedi um tempo para que eu o localizasse. Ao localizá-lo e avisar do cliente que o queria ver, o presidente me mandou dizer àquela pessoa que ele não estava. Mandou-me mentir. Ou, para usar um eufemismo moderno: mandou-me faltar com a verdade. Não gosto quando a verdade falta. Muito menos quando eu faço a verdade faltar. Ora, o presidente não titubeou e, ao final do dia, desligou-me da empresa.

Muitas verdades vêm à luz de modo muito prazeroso e encantam os que as ouvem. Outras verdades vêm de forma mais dolorosa, saindo das profundezas da nossa existência, como vegetação viçosa que se esgueira por fendas que jorram pequenos feixes de luz. Vêm como o grito da dor de uma fisgada muscular. Vêm como hálito de faminto. Vêm como pequeno ponto putrefato de uma fruta. São verdades que, embora todo mundo desconheça, fazem questão de latejar na nossa cabeça ou de brilhar no escuro do quarto "à meia noite, à meia-luz".

É como diz o mesmo Humberto Gessinger, na mesma música, inclusive: "Toda vez que falta luz, o invisível nos salta aos olhos". Com ou sem luz; à meia noite ou ao meio dia; com ou sem dor... que seja dita a verdade, porque as verdades abrem veredas de escolhas certas, de integridade, de coragem, de sinceridade.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Herança

Quase todas as cerimônias de formatura têm algo em comum (além dos discursos, das becas, dos canudos e dos chapéus jogados para cima): a música "Como nossos pais", do Belchior. Interpretada com mais intensidade pela Elis Regina, a letra dessa música tem um verso que soa como um hino dos formados. Salvo engano meu, eles o cantam como se estivessem anos-luz à frente dos que os geraram, mas eu tenho a impressão de que o verso diz o contrário disso: "Minha dor é perceber que, apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais". Em outras palavras: reproduzimos os pais. 

Ora, se viver e ser como os pais for algo digno, legítimo, edificante... que não paire dúvida: é bom ser e viver como eles. O gosto pela vida; o respeito a si, ao outro e ao mundo; o cultivo de bons valores; a valorização do que é justo e verdadeiro; a batalha honesta pela vida; enfim: tudo aquilo que torna a existência melhor deve ser conscientemente herdado com muito orgulho dos pais. O interessante é que essas coisas não se entregam em aulas, não se compram em mercados, não são sorteadas. Antes, são produto de muitos ensinamentos que se dão mais na prática do que na teoria.

A vida consentiu que meu pai se retirasse do nosso convívio quando eu ainda tinha entre 4 e 5 anos. Minha referência masculina passou a ser meu avô - que hoje, beirando seus 90 anos, nos deu a graça de sua presença e a beleza de seu sorriso transparente, sincero e carinhoso. Vê-lo para mim é sempre uma alegria muito grande, porque nosso amor é recíproco. O tanto que observei este homem na minha infância e o quanto ouvi dele depois de adulto me dão claras noções do tipo de vida que devo levar, do tipo de valores que devo cultivar.

Naturalmente meus pensamentos me conduzem agora para o que minhas filhas herdarão de mim. Para as coisas que não lhes foram entregues em aulas, nem compradas no mercado ou sorteadas. Para o que elas perpetuarão daquilo que puderam absorver no convívio comigo. Para a herança imaterial e imarcescível que está sendo construída nelas dia após dia. Para o que elas tiverem apreendido do meu modo de ser e de viver, e que, por conseguinte, influenciará o modo como elas serão e viverão.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Palavras para ferir

"Eu não sei dizer nada por dizer", canta Ney Matogrosso na música "Fala". São palavras que sempre norteiam o que digo e o que escrevo. Não gosto nem um pouco quando não há sabor nas minhas palavras, quando não há vida nelas, quando não há essência, enfim: quando são palavras que seriam satisfatoriamente substituídas pelo silêncio. Palavras cuja ausência sequer seria percebida.

Claro: se não gosto de falar ou escrever palavras insossas, insípidas, também não suporto ouvi-las ou lê-las. Acho mesmo que é pela palavra que a gente move o mundo, que a gente se move e move os outros (e vice-versa, claro). Nesse sentido, penso como Belchior, ao cantar suas palavras tão incisivamente: "eu não sei cantar como convém, sem querer ferir ninguém". Aqui está a beleza da palavra latina "fero", que significa justamente o movimento de "levar" ou "trazer" algo a alguém: um golpe, um gesto, uma palavra.

Há palavras que parecem ter o peso de uma realidade muito maior do que a do simples som que as reveste. Algumas trazem o aroma da vida. Ou o odor da morte. Outras há que acariciam nosso rosto como se fossem brisa molhada pelas ondas do mar. Outras há, ainda, que parecem mover o chão aos nossos pés, arrastando as placas tectônicas das nossas certezas, das nossas crenças, dos nossos sentimentos. Palavras que nos tomam pelo ombro e nos agitam como folhas de árvores penteadas pela ventania.

Como é possível "ferir" por meio da palavra, é preciso cuidar para que ela conduza boas coisas a quem nos ouve ou nos lê. Mesmo que seja palavra ríspida, árida, dura, ela deve promover o bem, a vida. Deve edificar, deve "a bem soar". As coisas estão por aí, nas mais diversas formas de existir. Como canta JQuest, "tudo está parado esperando uma palavra. Diz aí".

sábado, 17 de novembro de 2012

O que me interessa

Nesses dias, tenho tido o incomensurável privilégio de estar intensamente ao lado de pessoas que eu amo demais. Viver tão bons momentos ao lado de pessoas tão queridas, que nos despertam os melhores sentimentos e que tornam minúsculos gestos em exorbitantes expressões de amor e carinho, é realmente viver. A todas elas, diria aqui o que disse Lenine, na música "É o que me interessa". Com todo o respeito que tenho por esse artista, mais uma vez tomo aqui emprestadas suas palavras:


Daqui desse momento
Do meu olhar pra fora
O mundo é só miragem
A sombra do futuro
A sobra do passado
Assombram a paisagem.
Quem vai virar o jogo
E transformar a perda
Em nossa recompensa
Quando eu olhar pro lado
Eu quero estar cercado
Só de quem me interessa.
Às vezes é um instante
A tarde faz silêncio
O vento sopra a meu favor
Às vezes eu pressinto e é como uma saudade
De um tempo que ainda não passou
Me traz o seu sossego
Atrasa o meu relógio
Acalma a minha pressa
Me dá sua palavra
Sussurra em meu ouvido
Só o que me interessa.
A lógica do vento
O caos do pensamento
A paz na solidão
A órbita do tempo
A pausa do retrato
A voz da intuição
A curva do universo
A fórmula do acaso
O alcance da promessa
O salto do desejo
O agora e o infinito
Só o que me interessa

Ave Vitae

A maravilha
De amar a vida
Ávida
Devida
Invade a ilha
Abre trilhas
Avenidas

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Greves graves

Rodrigo Santoro está entre os atores brasileiros mais competentes, tanto em sua carreira local quanto na internacional. Entre os filmes em que ele atuou (como "300 de Esparta", "As panteras" e outros) eu prefiro os nacionais, como "Bicho de sete cabeças" e "Abril despedaçado". Já entre esses dois... a escolha é bem mais difícil, porém pelo que gostaria de desenvolver aqui, vou escolher o último. E, depois, o primeiro.

"Abril despedaçado" conta histórias de famílias que, no árido Nordeste brasileiro, gastam seu tempo na elaboração e execução de emboscadas para matar, por vingança, membros de outra família, que também mataram por vingança. Decorre disso um derramamento de sangue que, de tanto acontecer, passa a ser tido como normal, como parte da norma. Dessa forma, um grão de areia que incomodou um bisavô - de tanto ir e vir na ventania da vingança - vira um imenso rochedo que esmaga o bisneto.

Greves que são feitas em universidades públicas e particulares brasileiras guardam alguma semelhança com o que descrevi acima, na medida em que questões de natureza política e administrativa que envolvem apenas certos cargos e funções, em vez de serem resolvidas em seu devido âmbito e com a devida competência dos dirigentes, acabam se tornando uma imensa parede que desaba sobre quem está sentado, querendo estudar.

Dias, semanas, meses em que a ventania das greves gasta e desgasta a base de uma participação social estudantil que poderia ser extremamente mais bem aproveitada se tomasse uma forma menos grave, uma forma grávida de bons ventos. É preciso desviar o curso daquele grão de areia que vai se tornando em rochedo esmagador, em um "bicho de sete cabeças", que nem os 300 de Esparta conseguem deter.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Horas gastas bestamente

A expressão "horas gastas bestamente" é parte de um poema de Elisabeth Bishop, que - dada uma significativa sincronia - me foi enviado por ocasião da minha postagem de ontem. Lindíssimo, o poema trata de perdas como algo sem mistério, como nada sério, como arte que deve ser aceita. Isso para qualquer coisa: desde algo de valor material, a algo como as "horas gastas bestamente".

Ao ler o poema, senti-me gratamente acrescido na reflexão muito simples que havia feito ontem. Lembrei-me de Vinícius de Morais, no Monólogo de Orfeu (da peça Orfeu da Conceição - que já tive o privilégio de representar no teatro), que em uma arrebatadora confissão de amor para Eurídice, sua amada, faz referência ao inesgotável prazer que lhe dá a presença de sua querida, quando ela vem com aquela "charla antiga" e lhe traz "aquele contentamento, aquele orgulho de rei..."

Quantas coisas boas me vieram à mente e me trazem agora as mesmas sensações. Tantas, tantas, mas tantas vezes me vi sozinho em um campo de futebol ou em uma quadra, ou ainda no muro da rua onde jogava, quando menino. Eu e a bola, por horas e horas a fio. Meus olhos se esbaldavam com a imagem, meus ouvidos eram massageados com o som da bola na parede, no chão ou na rede. Meus pés se deleitavam com o prazer do contato com a bola.

Tantas, tantas, mas tantas vezes me vi no meu quarto, sozinho, trocando as horas de sono pelo prazer de tocar minhas mãos nas cordas do meu violão. Aquelas cordas de nylon claras, aquela madeira fria e macia, aquele som que me dizia as palavras que eu mais queria e precisava ouvir, aquelas músicas extraídas com um limitado número de acordes... tudo aquilo (eu, a bola, o violão e o passado) foram "horas gastas bestamente", inteiramente responsáveis por muito do que sou hoje e pela imensa alegria que sinto só de lembrar. 

O perde-ganha

Fred Mercury, uma das vozes mais respeitadas do mundo, um dos compositores mais inteligentes, um dos músicos mais brilhantes que este mundo já viu, ao cantar "Love of my life", uma das músicas que são a própria identidade do Queen - sua banda -, implora: "bring it back, bring it back. Don't take it away from me because you don't know what it means to me".

É fato que o mundo canta essa música. Os cinco continentes, bilhões de pessoas conhecem "Love of my life" e cantam suas perdas. Seja lá do que for, a perda é uma experiência que machuca a quem tem um mínimo de sensibilidade. Qualquer subtração da gente, sobretudo, quando é súbita, sempre desestabiliza. E até conseguirmos botar o trem nos eixos de novo, demora. E quando conseguimos, as estrias restantes, as cicatrizes falantes provocam chacoalhes na estrutura da locomotiva.

Eu, por mim, suporto perder muita coisa. Muita mesmo. (Só não suporto mesmo é perder tempo). Feliz ou infelizmente tenho uma boa capacidade de me readequar à perda e de reajeitar a vida com aquele novo vácuo, como quem se habitua à fisgada do músculo de um membro que já não existe mais no corpo. Aprendi desde cedo - perdi pessoas, perdi oportunidades -  e hoje estou um pouco mais calejado em relação a isso.

Claro que a possibilidade de perdas ainda me traz algum receio. Mas a possibilidade de voltar a ganhar é maior do que a vontade de chorar perdas. O desejo de sorrir e de brilhar é maior do que o de me encapsular. O combustível que é a esperança me movimenta mais do que o veneno de ficar lamentando uma perda e implorando que a coisa perdida seja trazida de volta.

domingo, 11 de novembro de 2012

À sombra das coisas

Tive hoje a enorme felicidade de voltar a jogar futebol depois de uns 8 ou 9 meses. É... quase o tempo de um parto para poder voltar dividir 90 minutos com os amigos, disputando quem é, como equipe, mais capaz de fazer mais gols. O que vale mesmo é a diversão, a companhia, o exercício físico, a beleza do campo - todo gramado, com linhas e redes brancas... e o melhor: ao lado da represa. Para onde se olha, se veem paisagens lindíssimas.

Antes, porém de chegar ao campo, o trajeto já havia me despertado para pensamentos que quero compartilhar aqui. O caminho para lá é pela Rodovia dos Imigrantes. Invariavelmente, sobre nossas cabeças, imensos aviões cruzam aquela direção, indo pousar em Congonhas. Com o sol escaldante que fez esta manhã, os aviões brilhavam tanto, que rescendiam sua luz pelo espaço, com se se expandissem em si próprios.

Mas o que mais me impressionou foi notar a sombra deles passando sobre a pista que eu atravessava. Pronto: me vi à sombra de uma coisa que era absolutamente maior do que eu. Incrivelmente mais rápida e mais pesada do que eu. Do ponto de vista pragmático, mais útil, mais cara, mais um tanto de coisas. Eu, ínfimo diante daqueles aviões que se exibiam no ar, recebia por um átimo o passar lépido de sua sombra sobre mim. Comparada ao avião lá em cima, a sombra dele é mínúscula aqui embaixo.

Quantas sombras vêm na nossa direção todos os dias? Quantas coisas deixamos de valorizar, porque as julgamos menores. Quantas coisas nos foram ditas nesta vida, e das quais só enxergamos a sombra - e nos arrogamos a prepotência de termos entendido tudo. Quantos gestos foram a sombra de um grande carinho, e nós só tomamos como mais um gesto, só mais uma sombra. Como Platão alertou há tanto tempo com seu mito da caverna,  quisera eu ter a sabedoria de considerar que a sombra que se mostra a mim é apenas parte de uma realidade refletida e que merece igualmente o meu olhar atento.

Um milhão vezes quanto?

Num dos atendimentos que faço a um aluno de 8 anos, sempre visando ao aprimoramento de sua fala, audição, escrita e leitura, ele leu no alto de um capitulo os algarismos romanos. Era XIV, mas ele leu XVI. Parei, expliquei para ele por que não poderia ser 14 etc. Aproveitei e aumentei a dose: retomei os demais números - L, C, D e M. Fiquei brincando de montar: 2012 em algarismo romano; sua idade em algarismo romano... e por aí afora. Mas o danado me saiu com esta: é como é um milhão em algarismo romano?

Não. Eu não me lembrava de como era. Não tive dúvidas: perguntei se ele tinha alguma ideia de como poderia ser "um milhão" em algarismos romanos. Diante de sua negativa, perguntei se ele tinha alguma ideia de onde poderíamos encontrar aquela informação. Como a maioria dos meninos de sua geração, não poderia dar outra resposta: Google. E lá estava a resposta que fez a gente se divertir montando números e números - até decidirmos retomar a leitura de "O Pequeno Príncipe".

Aquele capítulo (o XIV, não o XVI) falava de um homem que cuidava do lampíão em seu planeta. Era ele que determinava a luminosidade do planeta, mediante os incríveis 1.440 pores de sol que havia diariamente. Para o Pequeno Príncipe, aquele homem, tão afeiçoado ao cumprimento da ordem, parecia tolo, mas no fundo era mais inteligente, mais sensível, mais útil do que muitos outros, uma vez que conseguia se ocupar "de outra coisa que não fosse ele próprio".

Já faz um tempo que lemos este livro, e ao final de cada capítulo fazemos uma discussãozinha sobre o que podemos aprender na leitura. Para ele, o significado foi um. Para outros, o significado poderia ser múltiplo: cuidar de si ao cuidar da participação de outra pessoa no que diz respeito à sua vida, amando-a, doando-se a ela, fazendo coisas por ela. É incontável o número de vezes que a pessoa amada vem à mente, é incomensurável a dimensão do bem-estar que se experimenta amando, é infinita a quantidade vezes que pronuncia o nome dela. Talvez um milhão, vezes um milhão vezes tanto.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O caminho para o triz

Chico Buarque, numa de suas mais belas músicas (Beatriz), canta que o "pra sempre é sempre por um triz". Trata-se de um verso revelador e instigante, paradoxal e inquietante, porque o "pra sempre", que tem o poder de criar uma sensação de saciedade infinita, de eternidade, de plenitude... o todo-poderoso "pra sempre" pode ser impiedosamente reduzido a um triz. Um imenso tecido de seda, uma imensa bolha de sabão, um incomensurável fio de lã... destroçado a ponto de só restar um triz.

Aliás, um triz é a figura de um fio, a mais ínfima das partes de um todo, um quase nada. O triz é o remanescente, é a leve lembrança de algo que ainda luta para existir, é o resto, é a ruína. É a letra que antecede o ponto final. É o quase fim de uma relação amorosa. Como canta Renato Russo, na música intencionalmente chamada "Por enquanto": "Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar que tudo era pra sempre? E o pra sempre sempre acaba".

Chegar ao triz é o resultado de ter traçado o caminho que foi da magnitude à quase insignificância, da plenitude à escassez, do tudo ao quase nada. Ora, se existe essa direção que faz as coisas definharem, há o caminho inverso, que transforma o pequeno em imenso, o anão em gigante, o bite em terabite. Existe o caminho do fortalecimento, da ascensão, do engrandecimento, da valorização, do reconhecimento.

Talvez aí resida o ponto inicial da fenda que corrói qualquer relação que se pretenda "pra sempre": no reconhecimento. A falta dele é (como canta Paulinho Moska) "um grão de sal no mar do céu". A falta constante do reconhecimento transforma o grão em grãos, e estes em uma avalanche que desaba e põe a relação a caminho do triz. Ora, é preciso escolher a cada dia o caminho a tomar: reconhecer o outro ou ser indiferente a ele. É preciso atender o que sugere o mesmo Moska: "deixe que o beijo dure, deixe que o tempo cure, deixe que a alma tenha a mesma idade do céu".

O amor e a Fênix

Todo mundo enfrenta (ao menos) um período de dores. Faz parte da existência, e embora pareça a morte no meio da vida, serve pra gente se fortalecer, aprender, pra gente (se) entender melhor. Naquele que foi, talvez, o mais pungente, o mais lancinante para mim, uma bela voz vestindo uma música triste tornou-se emblemática: a de Laura Pausini. "Se ami sai quando tutto finisce. Se ami sai come un brivido triste, come un film dalle scene giá viste, che se ne va". No refrão, em dueto com Gilberto Gil, ela canta: "se o amor acaba, a ninguém cabe a culpa; se o amor acaba, não cabe desculpa".

E é assim. Uma realidade cantada e recitada por tantos. Vinícius imortalizou a ideia paradoxal de que o amor "seja eterno enquanto dure". Mais recentemente, Axl Rose canta que "nothing lasts forever... and it's hard to hold a candle in the cold november rain". Nada dura para sempre. Por isso, talvez seja possível dizer que o fim do início também pode ser visto como o início do fim. Todavia, por mais paradoxal que seja, provavelmente essa verdade deva ser a maior motivação para que o amor seja vivido "em cada vão momento", como recita Vinícius - no mesmo poema acima citado.

O amor parece ser como o arquétipo da Fênix, aquele mito grego do pássaro que, quando morria, queimava-se até virar cinzas, para tempos depois renascer vigoroso, no esplendor da sua força - esbanjando vida e enfrentando novos desafios. Essa insistência, essa perseverança, essa fé na certeza de que a vida vale a pena ser vivida com amor é o que faz a gente brotar novamente e se tornar árvore frondosa, copada e frutífera.

Fecho esta reflexão com citação a um poeta e cantor mineiro, Vander Lee: "Românticos são tipos populares que vivem pelos bares e, mesmo certos, vão pedir perdão. Que passam a noite em claro, conhecem o gosto raro de amar sem medo de outra desilusão. Romântico é uma espécie em extinção" - com toda a certeza de que renascerá das cinzas, como Fênix.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Amor de longe

A educadíssima voz lírica de Marisa Monte enfeita o ar quando canta. Acaricia os ouvidos. Lembro agora alguns versos, que vêm ilustrar o que quero dizer hoje. "Ao meu redor está deserto. Você não está por perto ainda está tão perto. E longe. Amor de longe".

Embora meu filósofo predileto seja Aristóteles, vou me referir a Platão - que nos deixou muita coisa boa para pensar. Até hoje, em qualquer meio, discute-se o mito da caverna. Até hoje se discute a relação do mundo ideal/mundo imperfeito com os ensinamentos religiosos. Até hoje se discute a noção de verdade única. Até hoje se fala de amor platônico.

Amor platônico (falando assim, a pinceladas largas, grosso modo) é aquele que se caracteriza pelo sentimento intensamente vivido por uma das partes, a qual, por sua vez, sabe da impossibilidade de concretização da relação amorosa. Mesmo sabendo não ser correspondido, aquele que ama sustenta a todo custo seu sentimento por aquela que para si é uma indefectível mulher, a perfeição em pessoa, uma suserana para sua vassalagem, uma inatingível realidade. Um não-lugar (= utopia). E é capaz de se dar por feliz assim, amando à distância. Amando "de longe". E sem sofrimento. Nossa mente ocidental tem dificuldade para entender isso.

Ora, neste mundo de busca frenética pela satisfação imediata, por mais estranho que possa parecer, ou doentio, é preciso dar espaço àquele que ama e não tem a menor pretensão de ver-se obrigado a ser correspondido em seu sentimento. Ama porque ama. Àquele que ama amar. Àquele cuja razão de existir está em amar, sem que a distância da pessoa amada lhe provoque sofrimento. Àquele que ama de longe.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Despertar para a vida

Amigos, parem tudo.
Acabo de chegar de um show do JotaQuest, banda mineira que admiro muito. Tive o privilégio de estar praticamente na cara da banda, de admirar o excepcional baixista PJ e de cumprimentar o Rogério, vocalista. Há tempos não curtia tanto um show: cantei (alunos, estou rouco para  a aula de daqui a pouco), dancei, pulei. Vivenciei cada momento do show.

Mas nem um momento do show (nem um mesmo) foi tão inesquecivelmente maravilhoso quanto o que vou narrar. O evento se deu em comemoração aos 21 anos de existência da Fundação LaraMara, que cuida da melhoria da qualidade de vida de pessoas com severa deficiência visual. Começou pequenininha. Hoje atende o Brasil. Dá sentido à vida de muita gente. Coloca pessoas cegas no mercado de trabalho. Dizem eles que o melhor da vida não é visto com os olhos, mas com o coração. Afinal, beija-se de olhos fechados. Abraça-se de olhos fechados. Fala-se com Deus de olhos fechados. Suspira-se profundamente de olhos fechados. E por aí afora.

Quando o vocalista desceu do palco para falar com Lara, a inspiradora da instituição LaraMara, e ela se propôs a subir no palco e tocar a música FÁCIL na bateria, a banda não teve dúvida. Na hora de executar a referida música, ajudada, aquela moça linda, completamente cega (desculpem-me os politicamente corretos: completamente deficiente visual), enfim: aquela moça completamente cega, ajudada, pulou a grade e foi levada pelo próprio baterista ao centro do palco e sentou-se no banco atrás da bateria. Sentiu o espaço, mediu a distância dos pratos, da caixa, do bumbo etc.

Daí foi só a banda dar o acorde de Sol maior. E ela começou: tocou tão espantosamente bem, que, de olhos fechados, não se diria ser uma moça cega tocando a bateria. Rapaz: aquilo foi um gesto de amor profundo. Amor à música. Ao momento. À pulsação da vida. À superação. À super-ação. E fiquei eu pensando: cara, que ridículo que sou quando me limito a fazer certas coisas. A manifestação de amor da Lara foi um despertar de vida em mim. Como disse ontem: amar é despertar a vida. Na gente. Nos outros.

(PS: desculpem pela visualização do texto de ontem: falha minha. Mea culpa, mea maxima culpa)